Diário da Região
COMPORTAMENTO

Psicóloga Beatriz Breves fala sobre o efeito da positividade tóxica

Psicóloga Beatriz Breves afirma que trabalhar a positividade a toda hora pode ser ruim e alerta sobre a necessidade de as pessoas resgatarem o sentir que foi suprimido pela razão

por Francine Moreno
Publicado em 06/05/2021 às 19:59Atualizado em 06/06/2021 às 00:14
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 Beatriz Breves é psicóloga, psicanalista, bacharel e licenciada em física (Divulgação)
Beatriz Breves é psicóloga, psicanalista, bacharel e licenciada em física (Divulgação)
De forma prática, livro 'O Eu Sensível' propõe que o leitor expresse diferentes sentimentos de A a Z, como aconchego, desencanto, melancolia e rancor (Divulgação)
De forma prática, livro 'O Eu Sensível' propõe que o leitor expresse diferentes sentimentos de A a Z, como aconchego, desencanto, melancolia e rancor (Divulgação)
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A psicóloga, psicanalista e psicoterapeuta Beatriz Breves tem uma proposta clara em seu trabalho diário: resgatar o sentir e demonstrar a importância deste processo para as pessoas. Parte de um trabalho de pesquisa que se estende por mais de 35 anos - e com um viés prático - a autora apresenta o conceito denominado Ciência do Sentir no livro "O Eu Sensível", publicado pela editora Mauad.

Valendo-se de uma linguagem poética, quase didática, a autora carioca classifica o sentir como uma constante universal humana, na qual os sentimentos representam o suporte do eu. O pensamento, segundo ela, é uma expressão do sentir - e não somente da razão, na medida em que decodifica a vibração correspondente a cada sensação.

Neste cenário, a especialista faz um alerta sobre a obrigação de estar bem o tempo todo, como se silenciar os sentimentos negativos fosse de fato acabar com eles. Trata-se da chamada positividade tóxica. E esse comportamento é incentivado desde a fase infantil, quando as crianças são ensinadas a reprimir o que sentem ao ouvir frases como "Chorar é para os fracos", "Sentir raiva é feio", "Inveja? Eu não tenho esse sentimento" e "Sentir medo é para covardes".

Confira a entrevista com Beatriz Breves.

Vida & Arte - Como podemos definir a positividade tóxica?

Beatriz Breves - A positividade tóxica pode ser definida como uma incapacidade para suportar o sofrimento. Se uma pessoa se depara com uma grande tristeza, uma situação de angústia, um sofrimento, e não sabe administrar o que sente, para se defender ela pode tentar minimizar a dor emocional criando uma espécie de anestesia psíquica. Assim, sendo incapaz de sofrer o sofrimento, nega a realidade do que está sendo sentido, mas que, em absoluto, é sinônimo de que a sua dor psíquica não se faça presente e que atue com grande toxidade.

Vida & Arte - Hoje, a geração das redes sociais sofre de positividade, além de tóxica, compulsiva? Existe uma obrigação de estar bem o tempo todo?

Beatriz - Desde cedo é muito comum aprendermos a evitar o que sentimos, ou seja, não nos ensinam a lidar com o sentimento, mas, sim, a reprimi-lo, principalmente diante de um sofrimento. Nesses momentos, dificilmente alguém nos diz: "pode sofrer, eu estou aqui", "entendo que precise ficar sozinho para sentir a sua tristeza". Ao contrário, são falas que tentam promover o afastamento da dor: "não fique assim, tudo passa", "procure se distrair, até porque não há nada como um dia atrás do outro". Isso, inevitavelmente, leva a pessoa ao desconhecimento da riqueza de sentimentos que possui, além de empobrecer a sua forma de lidar com os momentos de sofrimento da vida. No que diz respeito às redes sociais, elas apenas apresentam em maior escala o que muitas pessoas já vinham fazendo consigo mesmas. De fato, as redes sociais, até pela facilidade e velocidade de comunicação, possibilita a demonstração com maior nitidez da positividade tóxica e da compulsão pela busca de um mundo "cor de rosa", resultado da negação de um mundo real devido à incapacidade da pessoa se sentir de maneira fluida.

Vida & Arte - Diante do discurso "a dor é inevitável, mas o sofrimento é opcional", é preciso compreender que somos humanos e sentimos dor, raiva, angústia e frustração, principalmente, hoje, durante a pandemia do coronavírus?

Beatriz - A própria frase já demonstra uma contradição, pois não há como sentir dor sem sofrer e sofrer sem sentir dor. Essa afirmativa deixa clara uma tentativa de controlar os sentimentos, e isso não é possível. Atualmente, durante a pandemia, talvez nunca tenha se feito tão necessário saber lidar com o que se sente. Venho observando muitas pessoas perdidas em seus sentimentos, pois, até então, pelo desconhecimento de como lidar com o que sente, se impuseram um processo de desumanização ao tentarem se espelhar na máquina que, possuidora de inteligência artificial, é incapaz de sentir. Sem dúvida, é fato que o sentimento não pode ser controlado, mas pode ser transformado e, para tal, se faz necessário sentir — seja dor, raiva, angústia, frustração, etc. — e, assim, encontrar alívio para o sofrimento.

Vida & Arte - Hoje vivemos numa sociedade que impera a urgência e a felicidade. Neste cenário, qual é o problema com a positividade tóxica?

Beatriz - O problema é que ela é a negação da natureza humana em sentir os sentimentos, sejam eles de que natureza for. Valendo-me de uma linguagem popular, "o pacote vem completo", pois não há como separar os sentimentos prazerosos dos não prazerosos. A pessoa que não sabe lidar com a dor do sofrimento não sabe lidar com a tranquilidade da paz.

Vida & Arte - Neste cenário da positividade tóxica, qual é o papel do otimismo?

Beatriz - O sentimento de otimismo é fundamental para o bem-estar de uma pessoa e nada tem a ver com a positividade tóxica. Até porque o otimismo não é a negação do sofrimento, ou seja, do que de ruim pode estar acontecendo ou provocando situações dolorosas de viver. O otimismo é um sentimento que torna possível a ideia de que será possível entre as idas e vindas da vida, entre as situações de tormenta e de paz inerentes à vida, superar as dificuldades e sofrimentos vivenciados em determinados momentos.

Vida & Arte - Ao longo de mais de 35 anos, a senhora pesquisa e escreve sobre os sentimentos. Baseada nesta experiência, como as pessoas devem lidar com a positividade tóxica?

Beatriz - Aquele que aprende a lidar com o sofrimento, vivencia a dor psíquica com capacidade de tolerância e, assim, permite o tempo necessário para que a situação seja elaborada, portanto, superada. Então, eu diria que o caminho é não fugir de si mesmo, não negar os próprios sentimentos, tentar nomear e identificar com maior precisão o que está sentindo e, assim, se conhecendo mais, confiar na sua capacidade interna em adquirir amadurecimento emocional. Valendo-me de uma metáfora, eu diria que sofrer o sofrimento psíquico é como fazer o exercício físico, vai se ganhando musculatura emocional para lidar cada vez melhor com os reveses da vida.

Vida & Arte - A senhora apresenta, por exemplo, o conceito denominado Ciência do Sentir no livro "O Eu Sensível".

Beatriz - Sim, demonstro o sentir como sendo universal e fundamental no ser humano. Através do sentir, o ser humano estrutura a sua identidade, a qualidade dos seus vínculos, o seu pensamento, etc. No que diz respeito aos sentimentos, a tonalidade de nossas vidas é dada pelo que estamos sentindo, ou seja, se estamos tristes, o mundo nos parece nublado, se estamos alegres, nos parece ensolarado. Enfim, a Ciência do Sentir entende o ser humano como um ser que se estrutura no próprio sentir.

Vida & Arte - Na obra, o leitor encontra informações para lidar com esta atitude falsamente positiva de generalizar um estado feliz e otimista seja qual for a situação?

Beatriz - Sabendo da dificuldade das pessoas em reconhecer e se conectar com os seus sentimentos, o livro, apresentando 100 sentimentos dentre os mais de 600 que são passíveis de reconhecimento, solicita ao leitor que faça a sua conexão com cada um deles. Para tal, oferece para cada sentimento um exemplo de conexão e um espaço para que o leitor, se desejar, possa escrever o que sentiu. Ao final, espera-se que a pessoa tenha condições de reunir elementos que venham auxiliar na configuração do seu Eu Sensível, ou seja, na sua forma pessoal e subjetiva de se sentir e ser, tornando-se mais conhecedora de seus sentimentos, portanto, mais dona de si mesma.

Vida & Arte - A senhora propõe, na obra, uma experiência de reflexão e de reconexão com os sentimentos. De forma prática, sugere que o leitor expresse diferentes sentimentos de A a Z, como aconchego, desencanto, melancolia e rancor?

Beatriz - Exatamente, até porque é importante que a pessoa entenda que não existem sentimentos positivos ou negativos, mas, sim, sentimentos prazerosos e não prazerosos de se sentir. Se um sentimento vai se tornar positivo ou negativo em sua vida dependerá do uso que se faz dele. Daí a importância de se identificar e administrar os sentimentos, fazendo dessa riqueza interna que todo o ser humano possui — o sentir — um instrumento valioso para melhor bem-estar na vida.