Diário da Região
ENTREVISTA

Como está a sua criança interior?

Adultos calam a criança espontânea quando a humilham, a ignoram ou quando não legitimam suas dores e suas graças, diz Tina Zampieri

por Rita Fernandes
Publicado em 29/07/2022 às 18:54Atualizado em 29/07/2022 às 19:15
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Já ouviu dizer que existem várias versões de você dentro de você mesmo? Sim. É isso mesmo. E uma dessas versões é aquela “criança interior”, que brinca, que dá respostas inesperadas e é bem gostosinha de conviver, segundo a psicóloga Maria Aparecida Junqueira Zampieri, mais conhecida como Tina Zampieri.

Em entrevista à Revista Bem-Estar, ela explica a importância de estimular e acarinhar a nossa criança interior. “É muito grave a decorrência da morte da criança interior. Hoje existem estudos que mostram que pessoas que viveram constrangimentos, humilhações, negligências ou outras formas de abuso sofrem com mais frequência transtornos psiquiátricos e/ou comportamentos de risco, como direção perigosa ou drogas”, afirma. Tina é PhD em Ciências da Saúde e especialista em terapia EMDR (Eye Movement Dessensitization and Reprocessing), que em português significa Dessensibilização e Reprocessamento através do Movimento dos Olhos. Leia a seguir:

Revista Bem-Estar - Qual é a importância da “criança interior” na vida adulta?

Tina Zampieri - Independente da nossa escolha, todos nós temos muitos de nós dentro de nós. Então, aqui dentro (de mim) tem muitas “Tinas”. E aí dentro (de você) tem muitas “Ritas”: Aquela que sofreu um dano, aquela feliz, aquela que brinca, aquela que tem respostas espirituosas e aquela que se chateia. Todas elas estão dentro de nós. A criança interior é aquela que brinca, que dá respostas inesperadas e é bem gostosinha de conviver. Ela é muito importante na nossa vida adulta porque ela enfeita a nossa vida… nos faz brincar, nos traz coisas maravilhosas que vão ser úteis e para que a gente possa relaxar, para que a gente possa desfrutar melhor da vida e também para que a gente consiga se relacionar de uma forma mais pura com as outras pessoas, inclusive quando a gente for se relacionar com outras crianças.

 

BE - Quais são as atitudes que cometemos ao longo da vida e que acabam matando esse sentimento dentro de nós?

Tina - Do ponto de vista genérico, é quando nós vamos nos tornando tão sérios e valorizando coisas que, na verdade, nem tem tanta importância e trilhamos por um caminho do supérfluo ou do rigidamente voltado ao trabalho. E esquecemos que dentro de nós tem uma criança que tem vontade de brincar.

Respondendo de uma forma mais profissional, como psicóloga, eu digo que quando a nossa vida tem impacto na vida infantil e que aquela criança espontânea, que brinca, se viu tolhida por essa situação impactante, uma outra criança vem substituir aquela: Uma guardiã, uma que esconde embaixo do tapete ou a sete chaves aquelas memórias dos acontecimentos ruins. Aí nós, simplesmente, esquecemos que um dia fomos criança. Nos dissociamos e isso vai fazer parte das nossas defesas, como uma maneira de poder continuar com a vida. Podemos nos tornar adultos, excelentes profissionais, mas jamais vamos nos lembrar que um dia fomos crianças. Existem pessoas que dizem: “Parece que eu nasci com 15 anos de idade, porque eu não me lembro de nada.” O que será que aconteceu para que a pessoa precise usar desse recurso do apagar e do esquecer e do guardar a sete chaves? Naturalmente não aconteceram só coisas ruins. Aconteceram coisas boas também, mas quando guardou a sete chaves, guardou tudo por medo de precisar se lembrar daquelas coisas que fariam ser difícil continuar vivendo. Então é um adulto que dissociou sua parte infantil e segue com a vida e, assim, consegue viver. Nós dizemos que são os sobreviventes emocionais.

 

BE - Quais são as atitudes que os pais (ou outras pessoas, como avós, professores, irmãos, etc) geralmente cometem e acabam "matando" esse sentimento na outra pessoa? Geralmente isso acontece na infância, adolescência ou na vida adulta?

Tina - Geralmente acontece na infância. Adultos calam a criança espontânea quando a humilham, a ignoram ou quando não legitimam suas dores e suas graças. É fundamental ouvir as crianças. Humilhá-las, jamais!!!! Educar não é humilhar - pelo contrário: Educar é fortalecer, é estimular o florescer com perguntas, por exemplo. Mas matar a alegria natural pode acontecer depois por situações traumáticas, como abusos, por exemplo.

 

BE - Quais são as consequências na vida adulta? Quais são os sinais de que o adulto sofre em decorrência desse problema?

Tina - Sinais visíveis podem ser notados nas dificuldades de fazer amigos (ou namoros duradouros), excesso de timidez ou comportamento invasivo ou inadequado. Dificuldades na escola ou no trabalho (apesar de que, pelo contrário, muitos só vão bem nessas áreas), pesadelos ou pensamentos repetitivos, evitação de lugares ou de situações, autoestima baixa, autoconceitos negativos, dificuldade em controlar sentimentos (explosividade ou apagão/desligamento).

Todas essas situações podem ser indícios de perdas que aconteceram lá na infância. Além disso, pode ser um gatilho para depressão e ansiedade. É muito grave a decorrência da morte da criança interior. Hoje existem estudos que mostram que pessoas que viveram constrangimentos, humilhações, negligências ou outras formas de abuso sofrem com mais frequência transtornos psiquiátricos e/ou comportamentos de risco, como direção perigosa ou drogas. Além disso, pode acontecer, pelo contrário, de a pessoa ficar tão apagadinha, tão apagadinha, que é difícil perceber que ela está passando por dificuldades. E ela pode não ter sido percebida por ninguém, nem por ela mesma.

 

BE - Como podemos resgatar a nossa criança interior? E como podemos resgatar a criança interior de alguém que amamos?

Tina - No dia a dia, a gente pode estimular e acarinhar a nossa criança interior. Se ela não teve a devida atenção na infância, que tal a gente dar atenção para essa nossa criança, conversar com a nossa criança? Podemos dizer para nossa criança interior que hoje ela é a gente adulto, e amamos quem ela foi e o que ela fez. Podemos dizer que ela fez o que foi possível, que ela pode brincar e que ela pode ser ela mesma. Essas pequenas conversas que a gente pode ter com a gente mesmo. Isso, sim, pode ser muito útil mesmo. E quando a gente tem crianças por perto, a gente pode fazer isso para elas. Algumas culturas acham que é errado a gente ficar acarinhando, falando que ela é amada, porque acham que vamos criar adultos “pamonhas.” São culturas atrasadas com esse pensamento. Isso em qualquer camada social, porque esse pensamento existe em todo lugar. Eu tive a oportunidade de ter contato com pessoas muito simples, vivendo no campo, muito distante da cidade, que eram perfeitas como pais. Essas pessoas eram carinhosas com os filhos, escutavam os filhos, até mesmo aquelas pequenas bobagens que as crianças falam. Isso é importante porque dá o senso de pertencimento, de importância, de legitimidade. Isso tudo é maravilhoso e a gente pode fazer, sim. A gente pode fazer com a criança que mora dentro da gente e pode fazer pelos nossos filhos, sobrinhos ou netos. Fazer isso é maravilhoso e é preventivo.

 

BE - Gostaria de acrescentar mais alguma coisa?

Tina - Considero importante dizer a todos que não ignorem sua criança interior. Falem com ela, dêem afeto, ensinem… ensinem a fé, a dar risada, a brincar. Mas tenham atenção: Se não estiver funcionando, procure um profissional. Essa vida é muito curta, merecemos fazê-la bem vivida.