Diário da Região
PAINEL DE IDEIAS

Weltschmerz

Existem épocas em que ânimo, beleza e positividade nos parecem elementos inalcançáveis, e assim temos vivido em um país à deriva, no qual importantes questões éticas e morais vão tornando-se mais e mais deturpadas a cada dia

por Ary Ramos da Silva Júnior
Publicado em 01/07/2022 às 21:20Atualizado em 01/07/2022 às 21:48
João Paulo Vani (Reprodução)
João Paulo Vani (Reprodução)
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O percurso de aprendizagem é algo sempre cheio de surpresas, que aparecem de forma natural e podem trazer ensinamentos mais amplos do que havíamos inicialmente previsto. No ensino de línguas estrangeiras esse tipo de “brinde” é bastante corriqueiro, pois ainda que o foco seja aprender a se comunicar em uma nova língua, a cultura que permeia o aprendizado oferecerá tantos elementos enriquecedores que fará com que a experiência fique marcada na vida do aluno.

Seguindo nessa seara, muitas vezes nos deparamos com palavras sem tradução – seja no caminho da língua estrangeira para a língua portuguesa, seja no caminho inverso. E, por não existir tradução, essas palavras precisam ser explicadas. Esse é o caso de “ya’aburnee”, do árabe, que significa “uma declaração do desejo de que a morte venha para si antes que chegue para a(s) pessoa(s) amada(s) por causa do quão insuportável seria viver sem o(s) amado(s)”, e me faz recordar de minha avó, Leonor, pois esse era seu desejo e pedido constante a Deus, do qual foi atendida, partindo antes de todos os seus, inclusive antes de meu avô, Jarbas, que após a perda de minha avó, viveu sete meses de “saudade”, termo genuinamente brasileiro, que é a sensação de ansiar por algo ou alguém que você ama e que está ausente” e que no caso dela, jamais retornaria. Após seus meses de dura ausência sentida, meu avô partiu para encontrá-la na eternidade.

No espanhol, “tener duende” trata da elevação espiritual ou grande emoção causada pela expressão artística e sua autenticidade, e é habitualmente utilizada sobre a dança flamenca. Já no francês, “depaysement” explica a profunda tristeza de não se sentir parte de lugar algum, dor experimentada por estrangeiros, sobretudo os refugiados, que se sentem como flores arrancadas de jardins e plantadas em pequenos vasos que enfeitarão longínquas janelas.

Do japonês vem a palavra “wabi-sabi”, que pode ser explicada como uma faísca de otimismo e da possibilidade de encontrar beleza em pequenas imperfeições, qualidade que muitas vezes garante a força necessária para avançarmos em períodos difíceis.

Entretanto, existem épocas em que ânimo, beleza e positividade nos parecem elementos inalcançáveis, e assim temos vivido em um país à deriva, no qual importantes questões éticas e morais vão tornando-se mais e mais deturpadas a cada dia.

Diante de tantas atrocidades e da falência moral observada em nosso país, que não se choca com casos como de uma menina de apenas 11 anos, grávida de um estuprador, sendo institucionalmente violentada pelos agentes públicos que deveriam protegê-la, ou do drama de uma jovem atriz de 21 anos, vendido como notícia por uma enfermeira a um colunista de celebridades após entregar para adoção o fruto de um estupro.

Viver em um país que discrimina e humilha as mulheres, que não pune a leviandade, e contemporiza a barbárie do estupro, me faz sentir “weltschmerz”, palavra alemã que pode ser explicada como “um estado de espírito de cansaço ou tristeza sobre a vida que surge da consciência aguda do mal e do sofrimento”. Prefiro a versão alemã, pois algumas dores não têm tradução.

Prof. Dr. João Paulo Vani, Presidente da Academia Brasileira de Escritores (Abresc), é pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação da USP. Escreve quinzenalmente neste espaço aos sábados