Suje-se gordo!*
O acusado apareceu e foi sentar-se no famoso banco dos réus. Era um homem magro e ruivo. Fitei-o bem, e estremeci: era o Lopes, que não me reconheceu

“Eu não gostava e não queria, mas era convocado para o júri popular; pensava na frase bíblica: ‘Não julgue para que não seja julgado’. Cumprindo meu dever de cidadão, o primeiro réu que condenei era um moço acusado de furto, de uma ninharia. Ele não negou o fato, referindo-se apenas a um estado de necessidade; disse isso sem ênfase, triste, com a palavra surda, com tal palidez que metia pena. O promotor público achou nessa mesma cor do gesto a adequação da condenação. Ao contrário, o defensor mostrou que o abatimento e a palidez significavam uma certa inocência que merecia outro destino. Poucas vezes assisti a debate tão brilhante. O discurso do promotor foi curto, mas forte. A defesa, além do talento do advogado, fez um discurso admirável e teria salvo o réu, se ele pudesse ser salvo”.
“Um dos jurados, um ruivo, veterano, parecia mais que ninguém convencido do delito e do delinquente. Assegurada a condenação, com um só voto contrário. O jurado ruivo, inquieto, ficou satisfeito; disse que seria um ato de fraqueza, ou coisa pior, a absolvição. Um dos jurados, certamente o que votou pela negativa, proferiu algumas palavras em defesa do réu. O ruivo, que se chamava Lopes, replicou com aborrecimento: ‘O crime está mais que provado. E tudo por uma miséria de dinheiro! Quer se sujar? Suje-se gordo!’. Eu fiquei de boca aberta com essa expressão. Quando saí do tribunal, vim pensando na frase do Lopes. ‘Suje-se gordo!’ era como se dissesse que o condenado era mais que ladrão, era um ladrão reles, um ladrão de nada”.
“Mais adiante, fui novamente convocado. O processo era de um caixa de Banco, acusado de um grande desvio de dinheiro. Ouvira falar no caso pelos jornais. O acusado apareceu e foi sentar-se no famoso banco dos réus. Era um homem magro e ruivo. Fitei-o bem, e estremeci: era o Lopes, que não me reconheceu. A leitura dos autos me impressionou muito; havia provas em abundância. Mas ele negava tudo com firmeza, com o rosto alto, mirando o escrivão, o presidente, o teto e as pessoas que o iam julgar; ou respondia de maneira que trazia uma complicação ao processo.
Circulava os olhos sem medo nem ansiedade; acho que até com uma pontinha de riso nos cantos da boca. O promotor achou neles a revelação clara do cinismo, o advogado mostrou que só a inocência e a certeza da absolvição podiam trazer aquela paz de espírito”.
“Lembrei-me do julgamento da ninharia furtada e da frase do mesmo Lopes, então jurado: ‘Suje-se gordo!’ Não imagina o sacudimento que me deu esta lembrança. Vi que não estava diante de um ladrão reles, de um ladrão de nada. Lopes quis dizer que que o homem não se devia levar a um ato daquela espécie sem a grossura da soma. A ninguém cabia sujar-se por quatro patacas. Quer sujar-se? Suje-se gordo! Eu votei pela condenação, com os meus escrúpulos bíblicos.
Mas parece que nem todos leram com os mesmos olhos que eu. Nove negaram a criminalidade do Lopes, a sentença de absolvição foi lavrada e lida, e o acusado liberado. A diferença da votação era tamanha que cheguei a duvidar comigo se teria acertado. Sinto como se Lopes tivesse dito que valia a pena furtar, desde que uma quantia expressiva. O erro anterior, que Lopes ajudou a condenar, era de quem se suja por pouco”.
*Esse é um conto de Machado de Assis, aqui resumido e adaptado, das Relíquias da Casa Velha. Uma reflexão machadiana sobre o caráter de um homem, o Lopes, mas que também pode refletir a hipocrisia coletiva; talvez, uma crítica mais pertinente agora do que naquela época. Quem comete um grande crime está em paz; já o pequeno, atordoado. O crime não merece castigo se cometido com ambição, com senso de oportunismo. Já o ladrãozinho é castigado exatamente pela falta de esperteza. Não julgar para não ser julgado associa-se a outra passagem bíblica: ver o cisco no olho do outro sempre é mais fácil; difícil é ver a trave no nosso.
EVANDRO PELARIN, Juiz da Vara da Infância e Juventude de Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço às sextas-feiras