Diário da Região
PAINEL DE IDEIAIS

Se me anulo

E é sempre não querendo reportar os fatos cruéis que nos comem pelas beiradas que a moça que escreve acaba por relatar o vazio de si mesma enquanto o bolo esfria, o café amorna e o filete de sol vai embora

por Letícia Flores
Publicado em 20/06/2022 às 20:27Atualizado em 20/06/2022 às 20:46
Letícia Flores (Reprodução)
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Não quero escrever sobre os fatos cruéis que vêm nos comendo pelas beiradas sob todas as formas, vindos de todas as direções; talvez, entretanto, debruçar-me-ia sobre a dureza do espírito daqueles que veem na morte de outrem o passaporte para a “liberdade de encrenca”, e aproveitar-me-ia para fazer trocadilho linguístico a fim de que não se perca o hábito de exercitar a sintaxe da mente. E apesar de meus quereres contraditórios, era quase ontem quando vos escrevia sobre a imprensa, sobre a mídia, sobre o fazer jornalístico – por meio de frases concatenadas em defesa de um estado democrático de direito que fazemos de conta ainda existir por aqui – quando o desaparecimento da dupla começou a ser noticiado. Lembram-se?

Mas a gente, moça que escreve, a gente não suporta mais com a verdade. Dói menos peito tomar um shot de esquecimento, chupar limão e lamber sal pra tentar esquecer o rumor dos disparos diários feitos contra nossa consciência; fica mais fácil carregar na bagagem da humanidade os instintos se anuviados, desconectados, peneirados, esburacados. Entorpecidos os reflexos, nada nos resta senão anular.

Anulamos a vontade de relatar a própria distopia na mesma medida em que desistimos do que há de mais utópico em nossos sonhos. Sonhos? Que sonhos hemos de haver enquanto a água do café ferve e a moça que escreve checa a massa de um bolo de maçã com canela fresquinho, fresquinho? Que lutas hemos de travar pelo extinto senso de justiça se tudo o que nossas forças nos permitem é ser a moça que espera um filete de sol sair na tarde de um domingo chuvoso para alegrar um pouco nossa existência medíocre?

Assim, faz-se do nulo caminho para o mudo cidadão; faz-se do nulo caminho para o surdo silêncio que vai jogando vidas e esperanças no fundo do seu camburão. E a gente, moça, que só quer saber do nosso filete de sol, do nosso gole de café, do nosso pedaço de bolo ainda quente… a gente se anula pra caber na cena sem enlouquecer de vez; a gente é levado pela onda pseudoespiritual alimentada pelo terremoto da conspiração reptiliana; agente – junto – entra mudo e sai calado frente a tortura em vestes de disciplina, a imoralidade em vestes de devoção, o absurdo em vestes de normalidade conservada.

A vontade de viver vai se esvaindo pelos dedos da mão como areia fina em dia seco tanto mais lemos e assistimos e escrevemos na tentativa vã de elaborar o caos apocalíptico que se tornou o mundo pandêmico-guerrilheiro. E, às vezes, confesso ter sido mais fácil a vida da moça que escreve quando esta se via desobrigada à política, posto que quem anula o voto não tem de se preocupar com a responsabilidade de quem assume o poder.

Mas se do nulo faz-se o mudo, como há de continuar sua lida a moça que escreve, se ela se anular? Se da escrita pode-se fazer estrondo, que silêncio surdo há de ecoar em sua consciência esburacada, jogada à míngua no fundo daquele furgão? Se do voto faz-se a democracia, que cena se pode esperar do próximo capítulo se dele ela abdicar?

E é sempre não querendo reportar os fatos cruéis que nos comem pelas beiradas que a moça que escreve acaba por relatar o vazio de si mesma enquanto o bolo esfria, o café amorna e o filete de sol vai embora. É fingindo que não se escreve sobre nada que se escreve sobretudo sobre a luta, sobre o luto, sobre o nulo por sobre o voto que, dessa vez, – mais do que nunca – não se pode anular.

LETÍCIA FLORES, É professora de Língua Portuguesa, revisora e escritora em Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço às terças-feiras

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