Quarta parede
Quem sabe, no ano que vem, possamos colar-nos os pedaços em um mosaico colorido e retumbante, gigante pela própria natureza de ser regido por líderes que amem pessoas e usem verbas, em vez do contrário

Estávamos no estúdio quando meu colega, responsável pela edição das videoaulas e com quem eu costumava bater papos – regados a muito café sem açúcar – entre um take e outro, concluiu um de nossos debates matinais com a seguinte constatação: “a quarta parede caiu”.
Talvez tenha sido influência das figuras de linguagem que estava abordando no conteúdo das aulas ou simplesmente minha imaginação fértil, mas, instantaneamente, construiu-se sob meu consciente a cena de uma das paredes do nosso estúdio vindo abaixo enquanto avançavam em nossa direção zumbis vestindo as feições de nossos conhecidos, familiares e colegas como máscaras.
Ainda estávamos em 2019, o primeiro ano deste governo autocentrado que vivemos atualmente, esse mesmo preocupado com a manutenção de seus próprios privilégios e muito – muitíssimo – determinado em manter-se no poder – custe o que custar. Gabriel e eu, entretanto, mal podíamos imaginar o quão piores se tornariam as condições de vida do brasileiro miserável – aquele que, muito provavelmente, você que me lê duvida da existência por não vê-lo circular no seu bairro.
Tateávamos, então, aquele cenário sombrio de descobertas indigestas, buscando acolhimento naqueles poucos desgraçados que eram capazes de apontar os focos de incêndio que representavam as recentes eleições ao mesmo tempo em que nos descobríamos cercados por pessoas cujo caráter não se sabia mais definir: o limiar entre ingenuidade e estupidez não nos era mais palpável como a quarta parede nos fazia acreditar.
Essa tal parede, me explicou Gabriel, seria uma terminologia usada no teatro para representar a “parede invisível” que separa o público do palco. Sua analogia era referência à falsa sensação que sustentávamos desde o Ensino Médio de que atrocidades estudadas nas aulas de História – tais como ditadura militar e Holocausto – jamais poderiam se repetir, uma vez que estávamos assistindo aos acontecimentos passados do conforto de nossas poltronas, confiantes de que jamais líder político algum admitiria tamanho retrocesso... protegidos, enfim, pela quarta parede.
Meu amigo tinha razão. Caíra a quarta parede, levando consigo muito das nossas esperanças juvenis sem que tivéssemos tempo suficiente para assimilar os estragos. É claro que o amargor que amarra a boca do estômago ao ver pessoas queridas endossando os discursos idiotizados da criatura eleita, bem como os de seus herdeiros, é dolorido; mas, hoje, já no rumo das próximas eleições presidenciais, com uma conta estourada em óbitos, uma lista sem fim de agrotóxicos liberados para consumo da população que são proibidos nos Estados Unidos e na Europa, com um ministro da Economia envolvido em escândalo fiscal que se beneficia da alta do dólar para encher ainda mais os fundilhos de dinheiro fazendo “do coração, tripas” para que o teto de gastos federal dê conta de uma mirabolante obra populista e oportunista do novo Bolsa Família, é mais do que dor o que sentimos – é, sim, um refogado de desgosto e medo servido ao molho de laranjas envenenadas que nos mata paulatinamente.
É, Gabriel, seguimos. Seguimos recolhendo os cacos que sobraram das nossas ilusões rompidas pelo grito desesperado dos vermes que jaziam escondidos sob o mofo da elite. Quem sabe, no ano que vem, possamos colar-nos os pedaços em um mosaico colorido e retumbante, gigante pela própria natureza de ser regido por líderes que amem pessoas e usem verbas, em vez do contrário.
LETÍCIA FLORES, É professora de Língua Portuguesa, revisora e escritora em Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço às terças-feiras