Diário da Região
PAINEL DE IDEIAS

Ódio represado

No rádio, ecoa o funk ostentação da violência, e até ‘um tapinha não dói’ soa meigo perto de canções como ‘Baile de Favela’ e ‘Malandramente’ (objetificação do corpo feminino e naturalização do assédio)

por Washington Paracatu
Publicado em 20/09/2021 às 21:20Atualizado em 21/09/2021 às 00:33
Washington Paracatu (Johnny Torres)
Washington Paracatu (Johnny Torres)
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Assalto, briga de trânsito, xingamentos, socos desleais em treinos na academia. A lista é grande. Entre notícias do universo sensacionalista, jurídico, psicanalítico e filosófico, pretendo questionar alunos a respeito da agressão física, verbal, econômica, jurídica enquanto arma a serviço da perpetuação de um sistema simbólico e tomado como natural e impulsionador desse habitus político, moral e estético. À luz de Bourdieu e Hobbes, levarei aos educandos noções aristotélicas de catarse com o fito de questionar o conceito de dessensibilização: redução de nossa resposta emocional a cenas de violência, resultado preocupante em um país com históricas taxas de incidência de crimes contra a vida do próximo, em especial daqueles cuja carne já é barata no mercado.

No rádio, ecoa o funk ostentação da violência, e até “um tapinha não dói” soa meigo perto de canções como “Baile de Favela” e “Malandramente” (objetificação do corpo feminino e naturalização do assédio). Nesse prisma, o crime é tão horrendo que um elemento externo (funk, videogame, seriados, UFC) passa a ser o culpado. E é errado culpar um item quando tantos outros estão no tabuleiro da violência arraigada.

Por exemplo, após episódio de estupro coletivo no Rio de Janeiro, as cenas foram gravadas e reproduzidas na mídia. Para uns, a exposição a tais fatos suprime a participação em eventos reais, posto que a catarse, assim proposta por Aristóteles, tem o fim educativo de evitar o fato no cotidiano. Para outros, a simples visão estimula o comportamento agressivo.

Nesse contexto, ressurgem as “anger rooms”, locais nos quais o cliente paga para extravasar angústia. Imaginem a cena: o cliente liga, pede uma sala com notebook, boneco vestido de chefe, brinquedos. Ele chega e, armado com marreta, taco de beisebol, coquetel molotov, parte para a destruição. Uma versão do “Clube da Luta”.

Outrora o coliseu, hoje o tatame, a televisão, a sala de ódio. A violência segue firme, impactada pela pandemia e pelo enfraquecimento do Estado também violento. Há quem defenda repressão, censura e até linchamento, mas investir na qualidade de vida é mais decisivo para que a exposição à violência não atue como gatilho para o crime. De tanto presenciar a barbárie, surgem padrões de respostas que a reproduzem sob ação de estresse, raiva, medo. Tratamos pessoas como animais, e elas se comportam animalescamente em estado de natureza.

Enfim, temos de pensar na dessensibilização, sobretudo de quem não está, ou não é, totalmente saudável em termos médicos e sociais. Podemos quebrar coisas e bonecos na sala do ódio e ao custo de 35 a 1.500 reais. O drama é voltar ao escritório, à escola e à casa e enfrentar chefe, professor e filho com um taco de beisebol. Que falta fazem terapia e justiça social, uma educação de qualidade e libertadora, que resulte em um ser humano mais sensível e humanizado. Temos de ter esperança convertida em ação para concretizar tais utopias.

WASHINGTON PARACATU, Professor de Língua Portuguesa e Redação em Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço às terças-feiras