O tempo, a morte
Viver é ter a certeza de morrer. Todavia, não é o fim, posto que é possível continuar, seja no plano espiritual ou na realidade diária. Afinal, a vida continua no filho, no legado transmitido às novas gerações

Nasce o sol, e não dura mais que um dia. O tempo passa indiferente às vontades humanas. Nascemos, e a ampulheta já desembesta a fluir a areia fina de nossas vivências rumo à morte certa. Sim, vamos morrer um dia. E, enquanto a morte não chega, vivemos, vivamos. Infelizmente, contudo, muitos são os que, ludibriados pelas lorotas da sociedade da produção intermitente, acreditam que tempo é dinheiro, que o tempo urge, que não se pode procrastinar. E, assim, enganados pelo desejo de não perder tempo, há quem por aí seja coadjuvante da ditatura do relógio. Tanta gente desesperada e incapaz de perceber que o relógio só faz mensurar uma correria sem sentido de quem já não vive, apenas vegeta.
Há alguns anos, já certo de que envelhecia, Thiago de Mello decretou: “não tenho caminho novo, o que tenho de novo é o jeito de caminhar.” Sábio e vivido, Thiago se foi, velhinho, mas suas lições ficam e trazem reflexões necessárias. Há tempos, seu estatuto, no artigo primeiro, assevera: Fica de decretado que agora vale a verdade, vale a vida, e, de mãos dadas, marcharemos todos pela vida verdadeira. Thiago partiu, deixando uma vida dedicada à palavra, à defesa da natureza e da ética. Norbert Elias ensina que são necessários vários anos para aprender o que o tempo é. Thiago aprendeu e deixa lembrança de suas vivências.
Ainda impactado pela perda do poeta, minha vida amanhece mais silente e triste após a morte de Elza Soares. Há décadas, sua sensibilidade única cadencia momentos marcantes da minha vida, e para sempre hei de me louvar da mulher do fim do mundo, cuja voz será sempre lembrada e amada, a mulher que quebrou a cara e deixou, na avenida, a voz de quem desejou cantar até o fim. Elza não se permitiu esquecer o processo que a gestou. As memórias, sempre vívidas, explicaram o passado, deram novos contornos ao presente, trouxeram motivos para buscarmos um novo amanhã. Ah, Elza, você é grande, e sua voz está tatuada nas memórias afetivas de quem ainda sente, e eu sinto tanto.
Viver é ter a certeza de morrer. Todavia, não é o fim, posto que é possível continuar, seja no plano espiritual ou na realidade diária. Afinal, a vida continua no filho, no legado transmitido às novas gerações. Para artistas da grandeza de Thiago e de Elza, a obra há de ecoar por muitos séculos. Sempre que uma página de aula se abrir para a leitura dos Estatutos humanos do poeta, sempre que uma música ao fundo reproduzir o timbre inconfundível de Elza, vamos recordar suas vidas, suas lições.
Um dia vamos morrer. Enquanto tal fato marcante não chega, vivamos de modo mais leve, na companhia de quem nos emociona e na busca de objetivos nobres e elevados. Podemos não deixar um legado como o de Thiago e de Elza, podemos não dar nome a uma avenida, a um conglomerado empresaria, mas, se deixarmos memórias afetivas positivas para quem nos conheceu, de modo que a lembrança de nossa existência seja positiva, já terá valido a pena. Para tanto, colecionemos amores, gentilezas, afetos e a busca inadiável pela justiça, pela retidão ética, buscando um novo jeito de caminhar. Dessa maneira, mesmo mortos, viveremos na lembrança de quem se emocionou e se emociona com a nossa presença viva. Adeus, Thiago e Elza. Obrigado por tanto.
Washington Paracatu, Professor de Língua Portuguesa e Redação em Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço às terças-feiras