Diário da Região
PAINEL DE IDEIAIS

O samba é vida

Por muitos anos eu achei que Adoniran era nascido na capital, no bairro do Bexiga. Não, ele nasceu em Valinhos

por Lelé Arantes
Publicado em 02/08/2022 às 20:35Atualizado em 02/08/2022 às 20:57
Lelé Arantes (Reprodução)
Lelé Arantes (Reprodução)
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Mauricio Bellodi me enviou domingo, pela manhã, um vídeo de Clara Nunes interpretando a belíssima música Abrigo de Vagabundos. Ao lado dela, Adoniran Barbosa. A música é uma continuação de Saudosa Maloca.

Se Richard Dawkins estudasse música, ele diria que se trata de uma evolvabilidade, uma evolução da composição musical. Talvez, Octavio Paz diria que é poema em duas partes, com começo, meio e fim. Eu fico com o campo da empatia. Adoniran é um poeta empático até na escolha de seu nome artístico: João Rubinato adotou os nomes de dois amigos, Adoniran e Barbosa. No próximo sábado, dia 6, dia de Santos Reis, comemora-se o 110º (centésimo décimo) aniversário de Adoniran.

Aprendi a gostar de Adoniran ao ouvir uma entrevista dele à um dos programas de rádio da madrugada, por volta de 1975, quando trabalhava na Padaria Tripan, em Cosmorama. Ele estava divulgando seu último disco e me lembro muito bem do locutor, com sua voz empostada, anunciando o “maior sambista paulistano de todos os tempos”. Por muitos anos eu achei que Adoniran era nascido na capital, no bairro do Bexiga. Não, ele nasceu em Valinhos.

Quando ele morreu, eu estava em Nova Ipixuna, no Pará, a meio caminho entre Marabá e Jacundá, na direção de Tucuruí. Trabalhava na Serraria São Francisco e peguei a notícia de sua morte sintonizando a Rádio Nacional de Brasília, com uma programação exclusiva para o Norte do Brasil.

Já diziam as publicidades do Bamerindus: o tempo voa.

O tempo voou e dez anos mais tarde, em 8 de agosto de 1992, eu participava de um churrasquinho na casa do jornalista Carlos Eduardo de Souza e sua mulher, Zezé. Ele estava recebendo seu pai, que morava em Santos. E duas coisas me chamaram a atenção naquela tarde: a prosa girou em torno dos dez anos da morte de Adoniram e de repente estávamos arranhando Trem das Onze, tentando, como ele, tirar um som na caixa de fósforo. Eu fumava, nesta época.

Logo depois, Carlinhos pediu licença para nos deixar porque iria fazer as orações de Santa Brígida. No alto da minha prepotência irreligiosa, imaginei comigo: - Que heresia, rezar para Santa Brígida no meio de um churrasco! Foi então que notei que ele não estava bebendo.

Na verdade, eu nem sabia que existia Santa Brígida. Carlinhos e Zezé eram profundamente religiosos e por várias vezes tentaram me levar de volta a igreja. Eles nunca souberam que eu sou um evadido religioso, assim como sou um ex-fumante. E peço aos meus amigos Merli Diniz e Durval Noronha Goyos: não me deixem ser um ex-corintiano. Não há nada pior que um ex-alguma-coisa.

Adoro samba. João Nogueira, Roberto Ribeiro, Paulinho da Viola, Bete Carvalho, Clara Nunes, Bezerra da Silva, Zé Keti, Martinho da Vila, Nelson Cavaquinho, Noel Rosa, Originais do Samba, Cartola, Monarco... tudo velha-guarda do samba! E Adoniran. Como dizia meu amigo carioca nascido na Bahia, Osvaldo de Souza: o samba é vida.

E carrego comigo um galardão especial: em 2018 a Escola de Samba Império Serrano colocou no sambódromo um enredo que eu sugeri à presidente Vera Lúcia Corrêa de Souza: O Império do Samba na Rota da China. Aqui entre nós, não é para qualquer um. Infelizmente não pude descer a avenida no desfile: uma lesão no ciático me prendeu à cama no carnaval de 2018. Freudianamente, Wilson Daher diagnosticaria meu elevado grau de autossabotagem implícita.

(A aventura imperiana eu devo aos meus amigos fluminenses — de gentílico, não de futebol: Leandro Corrêa de Souza, Eliane Cunha e Demerval Teixeira Casemiro).

LELÉ ARANTES, Jornalista, escritor e historiador. Escreve quinzenalmente neste espaço às quartas-feiras