Diário da Região
PAINEL DE IDEIAS

Invisibilidade e cidadania

Por isso, não cabe apenas aos estudantes submetidos ao Exame Nacional do Ensino Médio refletirem sobre essa situação problemática, todos nós precisamos exercer nossa cidadania levantando o assunto para debate

por Letícia Flores
Publicado em 22/11/2021 às 22:26Atualizado em 22/11/2021 às 22:38
Letícia Flores (Letícia Flores)
Letícia Flores (Letícia Flores)
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Cidade, cidadela, cidadão, cidadania: todos estes termos, provindos do latim (civitas), levam à concepção de grupos de pessoas vivendo em sociedade de forma coletiva; compartilhando espaços urbanos, exercitando deveres e gozando de direitos. Evidentemente, entretanto, todo ser socialmente letrado tem plena consciência de que o acesso à cidadania não é democratizado, tampouco garantido a todos de forma igualitária e justa.

É nesse ambiente de reflexão que o tema de redação do Enem 2021, aplicado no último domingo (21), instiga candidatas e candidatos a apontar caminhos de enfrentamento a um problema aparentemente específico e isolado – o fato de quase 3 milhões de brasileiras e brasileiros não serem oficialmente registrados como cidadãos no território nacional. Pode até parecer pouco diante de uma população geral de mais de 200 milhões, mas seria o mesmo que apagar São José do Rio Preto e todas as cidades que compõem a nossa “região metropolitana” do mapa. Você, eu, nossos familiares e amigos simplesmente seríamos invisíveis aos olhos da civilização.

Mas em que implica essa invisibilidade? Este é justamente o ponto delicado tocado pelo recorte temático tratado. Basicamente, nada se faz sem um documento que comprove nossa existência; e embora ele nos lembre que somos mais um número, são estes algarismos que nos garantem o mínimo de acesso à civilidade: matrícula em creches e escolas, atendimento em hospitais, acesso a benefícios governamentais, participação em eventos culturais, emissão de outros documentos tais quais carteira de habilitação (e, com ela, o direito de ir e vir), carteira de trabalho, enfim… desde a necessidade mais básica de sobrevivência até a ocupação dos nossos espaços prescinde-se o registro civil. Sem ele, somos invisíveis.

Apesar de uma premissa tão básica de convivência em sociedade, foi só em 1997 que passamos a ter assegurado o direito ao registro civil de forma gratuita. Ainda assim, grupos minoritários como indígenas, quilombolas e moradores de rua enfrentam desde obstáculos físicos para chegar até os cartórios em que sua identificação seja reconhecida, quanto os cognitivos, quando nos lembramos de que, a depender do contexto cultural do ser vivente, ele dificilmente compreende a importância de registrar a si e a seus filhos.

Pensar essa realidade, ainda que nos pareça distante, é fundamental para a manutenção dos direitos de todos os cidadãos, uma vez que bastam governantes autoritários, preconceituosos, ignorantes e misóginos ascenderem ao poder para que tudo o que foi conquistado ao longo de séculos seja posto à prova. Por isso, não cabe apenas aos estudantes submetidos ao Exame Nacional do Ensino Médio refletirem sobre essa situação problemática, todos nós precisamos exercer nossa cidadania levantando o assunto para debate e nos lembrando da importância de se ter instituições públicas fortalecidas (tais como cartórios, defensoria pública, ministérios e secretarias), pois só elas estão – ou deveriam estar – verdadeiramente comprometidas com o bem-estar de todo e qualquer indivíduo, mesmo aquele que, a nossos olhos, nos seja invisível.

LETÍCIA FLORES, É professora de Língua Portuguesa, revisora e escritora em Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço às terças-feiras