Diário da Região
PAINEL DE IDEIAS

Extrema nobreza

A demais, com a mudança do teto, uma quantidade bem menor de cidadãos pode ser considerada verdadeiramente pobre. Imagine você se existe pobreza no Brasil? Ameaça comunista, sim; pobreza? Jamais!

por Letícia Flores
Publicado em 13/09/2021 às 22:41Atualizado em 14/09/2021 às 08:49
Letícia Flores (Guilherme Baffi 22/02/2019)
Letícia Flores (Guilherme Baffi 22/02/2019)
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De repente você dá um pulo da cama, acordado pelo estouro de uma bombinha caseira que a molecada costuma jogar para se divertir um pouco. Você poderia reclamar à administração do condomínio, mas não acha o interfone. A propósito, que espécie de leito carcomido pelas baratas é este que você jurava ser sua cama? Por outro lado, você, que sempre sonhou com uma suíte, agora só precisa se virar para o lado e lavar o rosto com a água encardida que escorre à míngua do cano podre da torneira.

Preferindo não se olhar no caco de espelho que usa para se barbear, você se dá conta do sabor de chumbo que lhe entope as entranhas – é o tempero da pinga pura que esfolou seu estômago vazio ontem. Mais uma terça-feira começa e, se quiser tomar um café antes de sair do barraco, terá de enfrentar a fila pela água do poço artesiano local.

Apesar de tudo estar diferente, algo estranho lhe move na direção certa dentro desta realidade, afinal de contas, só há uma a seguir. E mesmo que tentasse gritar aos quatro ventos a revolta de ter sido tirado de si o pouco que julgava ter – teto, comida, emprego – ninguém vai lhe ouvir.

Insípido, inaudível e invisível, você segue pelas ruas da cidade em busca de materiais de alumínio para levar à reciclagem e, quem sabe, tirar um troco para o almoço. Percebe a preciosidade do seu trabalho, que limpa a sujeira deixada pelos porcos humanos, que nunca será capa da Forbes.

No governo anterior, dizia-se que você é extremamente pobre por tirar mensalmente para seu sustento a cifra de duzentos e quarenta e seis reais. Mas agora essa quantia parece ter virado fortuna, visto que o novo teto de pobreza é R$ 89.

Oitenta e nove reais.

Por mês.

Não foi só você que acordou miserável em uma bela manhã sufocante de terça-feira; você é apenas mais um número entre os 27,2 milhões de brasileiros que se enquadram no status nobre de pobreza real. Mas isso quem diz é a FGV, e não vivemos tempos de se validar o trabalho científico de renomadas instituições.

Ademais, com a mudança do teto, uma quantidade bem menor de cidadãos pode ser considerada verdadeiramente pobre. Imagine você se existe pobreza no Brasil? Ameaça comunista, sim; pobreza? Jamais!

Entretanto, a folha rasgada de um jornal de hoje cruza seu caminho e você descobre uma notícia muito boa: o presidente quer aumentar o valor do Auxílio Brasil. Não, não é o Bolsa Família – esse é coisa de petista. E petista você sabe, né? Tudo ladrão!

Aí sim, uma luz no fim do túnel. Esse presidente é do balacobaco mesmo, hein? Reorganizar o Orçamento para poder oferecer uma renda básica (corre aqui, Suplicy!) aos que mais necessitam, passando por cima do próprio orgulho ao renomear o programa social que mais criticou e ainda assinar um mea-culpa pela baderna provocada pelos caminhoneiros que ele mesmo incitou… tudo isso pelo bem do País – não tem absolutamente nada a ver com a próxima eleição!

Agora, você só precisa reunir os documentos que lhe atestem miserável. Quem sabe há de ter leite condensado para todos, uma vez que a educação, sem sombra de dúvidas, deve ser para poucos, como reitera o ministro.

No check-list da extrema nobreza, você não precisa nem do pré-natal nem da frequência escolar; o acompanhamento nutricional você não tem. Quanto à carteira de vacinação completa… bem, essa é só para quem não tem histórico de atleta. Este, a propósito, não é pré-requisito para a inclusão no auxílio, Brasil.

LETÍCIA FLORES, É professora de Língua Portuguesa, revisora e escritora em Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço às terças-feiras