Entre fêmeas
Humanos que somos, ‘feminas’ ou ‘masculus’ em nosso próprio reconhecimento, enfrentamos o desafio de viver o intervalo entre partir das entranhas e partir às estranhas que nos aguardam ante a morte

Paira sobre tudo o que é feminino algo de misterioso, potente e acolhedor. E, ao dizer, “feminino” não me refiro em exclusividade àquilo que entendemos como “feito para” a mulher padrão, e sim à toda a substância insubmissa que sustenta a leveza pesada de se reconhecer “femina”.
A palavra que dá origem aos derivados de “fêmea” (feminino, feminilidade, feminismo, femismo), cuja etimologia latina sugerida pelo escritor alemão Thomas Mann "fides minus" significaria "aquela que não é digna de fé", resguarda vestígios do radical “fe-”, associado à ideia de fecundidade. Tanto uma sugestão quanto a outra, entretanto, acabam por distorcidas ou insuficientes, vez que a fecundidade supostamente feminina – representada também pela natureza – prescinde de um ambiente favorável para se revelar.
Tendo sido nós e tudo o que nos concerne, descreve, sustenta o feminino subjugado por séculos, pode ser desesperador o alcance do momento em que nos percebemos carregando no útero – termômetro insubstituível de nossas saúdes, sendo ele capaz de fabricar novos seres ou não – o inefável legado de se ser mulher. É aterrorizante o som metálico que reluz dentro de nossas cabeças quando a ficha do absurdo cai. Algumas, resignam-se; outras, revoltamo-nos.
Para estas, há o tempo de palpar a densidade de suas nuances no escuro das entrelinhas do que nunca nos contaram – e permanecem em segredo – buscando qualquer rastro de autoria ancestral. É confuso, intenso, dolorido, perturbador e, sobretudo, infindável: o caminho da mulher que se busca e se encontra em pedaços, cuja narrativa, diluída em fragmentos, vai se recosturando na memória tão logo as partes do quebra-cabeças se tornam minimamente discerníveis não começa, não acaba; só tem meios, não vê fim.
Humanos que somos, ‘feminas’ ou ‘masculus’ em nosso próprio reconhecimento, enfrentamos o desafio de viver o intervalo entre partir das entranhas e partir às estranhas que nos aguardam ante a morte.
Eu sei.
Se sabe.
Mas cá entre nós, entre fêmeas, é preciso força-tarefa de nossos mil lábios tesos pelo cansaço da viagem, de nossos habilidosos dedos bordadeiros de histórias e de nosso sofisticado sexto sentido para fazer passar, ainda que teimosamente, por entre rochas e musgos e lama e concreto e metal e asfalto, a água que sacia nossa gana por direitos ao mesmo tempo em que cura relações futuras e passadas, criaturas e matriarcas, amigas e comparsas.
Para tanto, preciso eu, a fêmea que vos fala, de cada pequeno nó dessa grande rede que nos retroalimenta, apertado por ti, a fêmea que me lê – não a que no espelho ascende, mas aquela que, dentro de ti, nos vê. Eu preciso das mãos de minha mãe, avós, primas e tias, daquelas das quais só encontro em sonhos e também daquelas cuja existência nem sei saber. Precisamos que essa rede se espalhe e fortaleça, silenciosa e inquebrantável, atravessando espaço e tempo, estrangulando o que nos oprime como se efêmero fosse ao perceber-se sobrepujado pela fecundidade nossa, atada em nossa rede, absorvida pelos lençóis freáticos, reconduzida à luz do sol.
Porque paira sobre tudo o que é feminino algo de misterioso, potente e acolhedor, capaz de subverter a lógica e tranquilizar feridas ao passo em que ateia fogo na escuridão de nós. Porque paira o misterioso, potente e acolhedor feminino sobre tudo aquilo de (r)evolução.
LETÍCIA FLORES, É professora de Língua Portuguesa, revisora e escritora em Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço às terças-feiras