Diário da Região
PAINEL DE IDEIAS

Dois séculos

Aqui entre nós, o mundo continua mudando dentro da noite veloz como cantou Ferreira Gullar. Sou de uma geração privilegiada e cada dia me sinto mais afortunado por ainda estar vivo

por Lelé Arantes
Publicado em 23/11/2021 às 21:35Atualizado em 23/11/2021 às 21:39
Lelé Arantes (Lelé Arantes)
Lelé Arantes (Lelé Arantes)
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Acho que todos nós, com os pés em dois séculos, sentimos certa nostalgia dos cinemas de rua como o Cine Rio Preto, o Capitólio, o São Paulo, o Central, o Eldorado... os mais antigos não tive o privilégio de conhecer. Todavia, cresci no Cine Cosmorama, do Neno e da dona Luísa, e estive no São Bento, de Votuporanga. Cada cinema, uma história. Ou, histórias. No São Paulo, por exemplo, eu me lembro de uma mostra de filmes de arte que, se não me engano, foi idealizada por Fran Jalles. Nesta mostra eu vi Retratos da Vida, de Claude Lelouch, e Fanny e Alexander, de Ingmar Bergman.

No Cine Cosmorama era de bom alvitre ver Paixão de Cristo que, a cada ano, ficava mais riscado, mais curto e com legendas sem sentido. Chegava a ter três sessões, fenômeno só repetido com Dio, come ti amo, com Gigliola Cinquetti. No Central, nos seus tempos de decadência, vicejaram os filmes pornôs alemães e franceses. O último filme que vi no Eldorado, salvo melhor juízo, foi O Gladiador.

Agora, encanto-me com a Netflix. Wilson Daher reclamou dia desses que a Netflix não tem os filmes famosos. Claro que ele não estava falando apenas de Hollywood. A Netflix é o mais famoso serviço de streaming e eu, particularmente, gosto muito. Me permite ver filmes e séries a qualquer momento. De preferência de madrugada. Outra permissão que considero importante é a possibilidade de ver produções cinematográficas de outras regiões do mundo, como as de Bollywood e as de Nollywood.

Bollywood refere-se ao cinema indiano, com megaproduções hollywoodianas, tipo O Tigre Branco. Nollywood é o cinema da Nigéria, que nos abre as portas para os filmes africanos. Mas não é só isso. A Netflix nos brinda com filmes e séries da Turquia, China, Coreia do Sul, Polônia, Islândia, Holanda, Japão e algumas produções da Espanha, Alemanha, França e Itália que jamais seriam exibidos nas salas de cinema do Brasil.

Alguns desses filmes são obras primorosas, tocantes e revelam uma arte forte e bem posicionada no mundo atual. O holandês A Batalha Esquecida, por exemplo, não deve nada a Steven Spielberg e não tem nenhuma estrela como Tom Hanks, Matt Damon, Vin Diesel ou Edward Burns... Como explicar que um filme sul-africano como Eu Sou Todas as Meninas jamais será visto nos cinemas de shoppings!

O Caso Collini, um primor de cinema alemão com o italiano Franco Nero e a romena Alexandra Maria Lara é uma mistura fina de atores e seu enredo é desbunde pela coragem de denunciar uma lei que envergonhou a nação germânica. Filhos de Istambul poderia muito bem ser um grande filme brasileiro em uma Turquia que desconhecemos. Podemos sentar, ver, apreciar e chorar com A Garota Dinamarquesa e tentar descobrir qual é a nacionalidade deste filme sensível, bonito, cheio de vida e de dor na transformação de Lili na pele do londrino Eddie Redmayne.

Aqui entre nós, o mundo continua mudando dentro da noite veloz como cantou Ferreira Gullar. Sou de uma geração privilegiada e cada dia me sinto mais afortunado por ainda estar vivo. Vi o homem descer na Lua, o Brasil na tevê conquistar a Copa Jules Rimet, Tarzan e Jane e Daniel Boone, Gorila Perez e Ted Boy Marino, Os Trapalhões, Irmãos Coragem, Marcelino Pão e Vinho, Vera Fischer em A Super Fêmea, Jesse Valadão e Nádia Lippi, o Roberto virar rei... e escrevi em máquina de datilografia, fiz cópias em mimeógrafo com papel stencil e tomei chope quente em festas de casamento dentro de curral com chão de palha de arroz!

Ave... velhice é um pé no saco. Rabisquei tudo isso para dizer que tenho sorte de ter chegado à era da tecnologia da informática e usufruir as coisas boas que o mundo moderno nos oferece. Acho até que tenho um pouco de Doctor Who!​​​​​​​

LELÉ ARANTES, Jornalista, escritor e historiador. Escreve quinzenalmente neste espaço às quartas-feiras