Desejos encalacrados
São canções a revelarem a alma dos anseios e, à parte seus encantos poéticos e a melancolia encalacrada no coração brasileiro, motivam no povo quereres de aproximação às elites que, pela arte, pouco se concretizaram

Em certos meios populares, expressões da modernidade na arte não passam dum baú de adivinhações complexas no intuito de afastar a população em geral dos seletos grupos de prestígio, donatários de ambientes da alta cultura e onde se respiram charme e refinamento. No entanto, embora vigore sentimento de negação a esses valores, há fundas vontades de se apropriar dos códigos superiores na ilusão de poder subir do estágio inferior a degraus melhores na escala social.
Na década de 1930, época em que agitações intelectuais e artísticas defendiam modernizações dos meios e enredos “do” e “para” o povo, parcela do mesmo povo voltava-se à imitação dos modelos burgueses, elitistas. E, assim, se a música popular é a expressão mais epidérmica dos anseios, talvez por meio dela possamos vislumbrar esse fenômeno. Tomemos algumas canções dum ícone daquele tempo, Orlando Silva.
Nele, o esteticismo pomposo, as “palavras difíceis”, o parnasiano gosto de inverter as frases, enfim o rebuscamento da linguagem o fizeram ser aclamado como o Cantor das Multidões. Pensavam: “Entendi quase nada, mas achei bonito”.
Na valsa “Rosa” (1937, de Pixinguinha e Otávio de Sousa), avultam preciosismos ornamentais e enfeites estilísticos na forma e conteúdo. Num idealismo clássico, a amada paira inatingível, com atributos quixotescos (Dulcineia), e não como um ser comum (Aldonça):
“Tu és
divina e graciosa, estátua majestosa
Do amor,
por Deus esculturada,
e formada com o ardor
da alma da mais linda flor
de mais ativo olor
que na vida
é preferida pelo beija-flor!”.
Imagens se mesclam ao parnasianismo de Olavo Bilac:
“És láctea estrela, és mãe da realeza,
és tudo enfim que tem de belo
em todo resplendor da santa natureza!”.
Alheio aos impactos modernistas, em “Neusa” (1938, de A. Caldas e C. Figueiredo) outra vez o elogio à mulher impõe-se à vida palpável:
“Há na luz clara e tranquila do luar
um poema em louvor do teu olhar
porque a própria natureza
se enleva em tua graça,
canta tua beleza”.
Em “Apoteose do Amor” (1936, de Cândido das Neves), um erotismo contido exalta a amada em face do infinito:
“Deus, só Deus sabe que os olhos teus
são para mim dois faróis clareando o mar... São dois lírios os teus seios alabastrinos,
quase divinos,
parecem feitos para o meu beijo...”.
Outra constante no repertório do grande cantor é a sensação crepuscular da vida, próxima em morbidez do “mal du siècle”. “Caprichos do Destino” (1938, de P. Caetano e C. Cruz) é um exemplo:
“Se Deus um dia
olhasse a terra e visse o meu estado,
na certa compreenderia
o meu trilhar desesperado”.
São canções a revelarem a alma dos anseios e, à parte seus encantos poéticos e a melancolia encalacrada no coração brasileiro, motivam no povo quereres de aproximação às elites que, pela arte, pouco se concretizaram.
ROMILDO SANT'ANNA, Crítico de arte e jornalista. Livre-docente pela Unesp, é membro da Academia Rio-pretense de Letras e Cultura (Arlec). Escreve quinzenalmente neste espaço aos domingo