Censura
No ano passado, o filme “E o Vento Levou”, um clássico do cinema, que teve a maior bilheteria de todos os tempos em valores atualizados, foi retirado da plataforma da HBO porque retrataria de forma idílica a escravidão nos EUA

A TV era pequena, mas a novidade era enorme. Até os vizinhos se reuniam na sala para vê-la. A bateria só recarregava na cidade. Por isso, o pai só permitia as novelas da noite, um desenho para a criançada e o jornal. Mais nada. No começo de cada programa, algo chamava a atenção. Um documento com o brasão da República e os dizeres: “Departamento de Polícia Federal – Censura Federal”. Trazia o nome do programa, horário e faixa etária. Muitos programas eram vetados. Durante a infância, foi o maior contato que tive com a censura. Tempos depois, cheguei a ouvir músicas com trechos modificados, como Faroeste Caboclo. Além disso, era bom não dizer certas coisas, não ter certas opiniões. Mas veio a abertura do país. E então se pôde dizer e pensar o que quisesse. As músicas podiam falar palavrões, criticar a polícia e a política. As novelas podiam mostrar qualquer tema. Opiniões tornaram-se livres. Até uma nova constituição foi feita. Liberdade, enfim!
Nem tanto. Sempre há alguém disposto a patrulhar o outro. Aquele mundo da TV preto e branco deixou de existir. Mas a censura voltou. Modificada, como modificada está a vida. Não há mais documento com brasão oficial. A nova censura não se baseia apenas na política e na “moral e bons costumes”. Há imposições sobre o que falar, pensar e até comer. Tem até uma tentativa de se impor uma forma de escrever e falar, a chamada “linguagem neutra”, nunca aplicada em lugar algum, mas que alguns insistem em ser a forma certa. Nem o auge da ditadura militar ousou a tanto. Tentativas de reescrever a história e proibir opiniões não é exclusiva do Brasil. Se alastram mundo afora. Ativistas de todos os tipos não se contentam em ter as próprias opiniões (pelo que tanta gente lutou no passado). É preciso mais. Querem impor sua forma de pensar e suas crenças aos outros.
Ontem foi lançado a continuação do filme “Space Jam”, da Warner Bros. No primeiro, de 1996, um dos personagens era Pepe le Gambá, que se apaixona por uma gata por crer que ela também é uma gambá. Devido às insistências em ir atrás da gata, o divertido gambazinho criado em 1945 foi vetado no novo filme, embora suas cenas já estivessem prontas. No ano passado, o filme “E o Vento Levou”, um clássico do cinema, que teve a maior bilheteria de todos os tempos em valores atualizados, foi retirado da plataforma da HBO porque retrataria de forma idílica a escravidão nos EUA.
O resultado é que vivemos novamente uma época em que opinião virou algo perigoso. Hoje temos “checadores”, pessoas que se arvoram no direito (não se sabe tirado de onde) de julgar o que outros dizem. E também os “cancelamentos”, julgamentos sumários de internet sem direito a defesa, que causam prejuízos reais às pessoas. Escrever um texto como este, por exemplo, é um risco. É preciso escolher as palavras, tomar cuidado com os assuntos. A censura é implacável.
São tempos estranhos. A liberdade que tanto buscamos está sendo violada por aqueles que se dizem seus defensores.
SÉRGIO CLEMENTINO, Promotor de Justiça em Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço às sextas-feiras