A noite que não acabou em pizza
Ainda na Itália, lá pelos seus vinte e poucos anos, vivia entre mafiosos cuja descendência fascista ou liberal não se podia facilmente reconhecer

Havia pouco que Elena chegara àquela incongruente cidade litorânea quando atravessou a porta de entrada do restaurante Pizza & Pasta. Natural de Nápoles, as cinco décadas que sustentavam o mecanismo de seu corpo ágil sugavam pelos poros o tempero agradável da maresia atravessada pela massa fresca recém-saída do forno à lenha. Sentia-se em casa.
Analisou rapidamente o recinto recheado por uma espécie bem conhecida – a de gente branca, herdeira e bem paga; satisfeita por gozar dos pequenos prazeres lambuzados a azeite extravirgem e vino rosso al bicchiere – até perceber que, à sua esquerda, havia escape para um jardim ao ar livre: “ma dai!”, balbuciou antes de se acomodar.
Folheou curiosa e lentamente o cardápio sem a menor intenção de pedir algo que não fosse a sua tradizionale margherita. Gostava de ler, estava sempre faminta; sua gana insaciável se estendia aos letreiros, revistas, manchetes, cruzadinhas penduradas nas bancas de jornal, menus ítalo-tropicais… Apertava seus olhos esverdeados, desenhados por vasos vermelhos denunciantes de suas noites de insônia, de modo a invadir a sutileza estéril que contorna a mediocridade daquelas pessoas, exemplares tão prototípicos da animalidade humana a qual se reveste de pompa a fim de maquiar seus instintos miseráveis; e apesar da intensidade com que o fazia, raramente era notada.
Aprumou o olhar para chamar o garçom e já se divertia com as caricaturas medievais que a clientela se orgulhava em representar no teatro da vida média quando o salão pelo qual passara minutos antes começava a se encher de burbúrios. O clima pesou. Os poros de Elena se fecharam repentinamente, como quando sua mãe contava do glorioso dia em que enfrentou a fila para cuspir o chão da praça que exibia o corpo dependurado de Benito Mussolini. Timidamente – afinal de contas, a euforia é caráter da plebe – os protetores dos bons costumes clamavam “mito”, acenando inocentemente com a mão esquerda enquanto a direita ajeitava dentro da cueca o minúsculo membro, levemente rijo ante a presença de seu ilustríssimo presidente.
Elena observava tudo placidamente. Não era sua primeira vez. Ainda na Itália, lá pelos seus vinte e poucos anos, vivia entre mafiosos cuja descendência fascista ou liberal não se podia facilmente reconhecer. Estava habituada à sensação nauseante a contorcer-lhe as vísceras enquanto homens – sempre em maioria – sorriam aqueles dentes amarelados pelo inevitável chorume autocultivado. Sentia-se em casa.
A pizzaria parou para ver, filmar, lamber e aplaudir a brutta figura. Inevitável – era seu ninho, disso sabia de antemão. Mas ainda que a “cidade alta” como um todo o louvasse, ninguém no restaurante soube que, horas antes, havia sido vaiado na praia. Elena riu sozinha da cena que criara ao imaginar o evento: o branco sendo escorraçado pelos índios que lhe empalavam com os cabos de seus próprios espelhos.
Aproveitando a agitação do ambiente, ajeitou as tetas suavemente em seu vestido de linho e levantou-se para sair. Encostava suavemente a cadeira à mesa quando uma atenciosa garçonete a interceptou:
- Não vai fazer seu pedido, senhora?
Sorrindo empaticamente, Elena encaixou a máscara de volta ao rosto e respondeu com seu português brasileiro ainda muito respingado pelo sotaque europeu:
- Obrigada, mas mio apetite mudou, signorina.
Parou em um quiosque a alguns metros dali. Pediu uma cerveja e meia porção de lula à dorê.
“Oggi a mia noite non acaba em pizza”.
Já não sentia-se em casa; sentia-se bem.
LETÍCIA FLORES, É professora de Língua Portuguesa, revisora e escritora em Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço às terças-feiras