A incrível história de Tião Jr.
Reza uma lenda que os poucos rebentos pelos quais Tião se apegou foram a Fifi e o pequeno Tião Jr., que o seguiu por uns tempos até se entregar à errância das calçadas, beirando mesas de baralho

Revelo esta saga com detalhes que pareceriam inúteis, pois a Fifi era xodó do meu filho. Tinha sérios problemas psicológicos e um deles se manifestava em ataques de surpresa aos tornozelos das visitas. Filha de Jezebel e Tião do Solo, sofreu maus-tratos de Dona Floripes, fabricante de sabão de cinza misturada a todo tipo de banha derretida em soda. Tião chegou ao país com um traficante, fuzilado em emboscada pelos lados de Ipiguá. Salvou-se por milagre e perambulou sem dono no bairro de gente boa, a dividir com jogadores de truco nacos de torresmo, lambaris fritos, salsichas ao vinagre e frango à passarinho.
Numa noite viu Jezebel na Casa de Tolerância. Meio zonza, havia exagerado nas sobras de cerveja que lhe davam os frequentadores. Desse encontro banal é que a Fifi veio ao mundo. Jezebel morreu na hora do parto e Tião do Solo, desolado, deu-lhe na telha atravessar a cidade e refazer a vida no Cristo Rei. Dizem com algum exagero que, naquela vila, gerou outros 300 filhotes de raças ambíguas e cores diferentes. Com essa fama, foi adotado por um morador de rua e hoje, ambos idosos, vivem no asilo perto dali. Reza uma lenda que os poucos rebentos pelos quais Tião se apegou foram a Fifi e o pequeno Tião Jr., que o seguiu por uns tempos até se entregar à errância das calçadas, beirando mesas de baralho.
Só agora obtive notícias de Tião Jr., irmãozinho caçula da Fifi, e quis livrá-lo da vida mundana. O Pedro, meu filho, foi trabalhar bem longe, numa indústria de comidas para cães e gatos. E assim fiquei sozinho, revendo fotos e filmes. A ideia é converter Tiãozinho num felicíssimo pet, restituir-lhe a autoestima, esperança. Aí começaram os estorvos e aborrecimentos. Tião Jr. foi levado por uns estranhos e, na casa onde se abrigam, só conversam no idioma quíchua. Não fazem exigências de resgate e garantem que Tiãozinho conservaria traços genéticos de rara linhagem, criada por nativos da etnia uru-aimará, perita em pastoreios de lhamas e faro aguçado em traficantes rivais.
Negociações seguem difíceis, e cheguei a trocar mensagens com os chefões do cartel. Ao me devolverem Tião Jr., prometi despachar à Bolívia tubos que proveriam de sêmen toda Chapare e outras províncias. Cauteloso, omiti que seu genitor, o velho Tião do Solo, continua vivo, inda que sem os fulgores de outrora. Reafirmo que não nos interessam horizontes nebulosos, lhamas de altiplanos e transações perigosas. Almejo somente tornar-me um tutor, como se diz hoje em dia, acudir e abrandar no Tiãozinho as doídas flechadas dos caminhos. Declaro, outrossim, que buscamos uma companhia ungida do amor incondicional que dignifica os cachorros, um alguém inspirado em São Francisco e adoce a nossa vida. E compartilhe conosco lindos momentos de afeto, aliás, bastante raros, ou que talvez já não existam em parte alguma.
ROMILDO SANT'ANNA, Crítico de arte e jornalista. Livre-docente pela Unesp, é membro da Academia Rio-pretense de Letras e Cultura (Arlec). Escreve quinzenalmente neste espaço aos domingo