Os dois Rosa
Guimarães Rosa dizia, pela voz do personagem Riobaldo, que viver é muito perigoso

Tenho minhas manias ocasionais. Atualmente meu tempo, lidando com a peste da Covid -19 e a peste da politicagem nefasta deste país, tem sido preenchido com leitura e releitura de bons livros e as reminiscências de nossa música popular, que perde espaço para letras e ritmos de sentido nenhum, apenas com apelação barata para consumo imediato e fugaz.
Por que, então, o título desta crônica? Porque estou revisitando Guimarães Rosa na literatura e me voltando a ouvir Noel Rosa, com suas composições imorredouras, mas desconhecidas ou desprezadas pelas novas gerações.
O poeta do bairro de Vila Isabel que era, na década de 30 do século passado, quase que zona rural do Rio, foi uma figura singular. Deixou o curso de medicina para seguir sua verdadeira vocação e se tornou um boêmio que morreu precocemente de tuberculose pulmonar, depois de um legado de composições ora românticas, ora de fundo social. As novas gerações deveriam redescobri-lo, para reconhecerem sua atualidade. Quando ele diz em “O orvalho vem caindo” que “tenho passado tão mal, a minha cama é uma folha de jornal”, ela talvez não imaginasse que ainda hoje, e cada vez mais, pessoas cognominadas com o eufemismo de moradores de situação de rua, se esparramam pelas calçadas e sob os viadutos, morrendo de frio e de chuva, quando não de abandono afetivo, às vezes salvas por mãos caridosas.
Também na composição “Com que roupa” ele, em parceria, pergunta com que roupa ele vai aceitar certo convite: “Eu hoje estou pulando como um sapo, pra ver se escapo desta praga de urubu. Já estou coberto de farrapo, eu vou acabar ficando nu”.Não cabe neste espaço a citação de tantas outras belas composições do poeta da Vila Isabel.
Então me volto para Guimarães Rosa, aquele que dizia pela voz do personagem Riobaldo, em “Grande Sertão Veredas”, que viver é muito perigoso e que “o sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, se vier, que venha armado”. Dizem os críticos que a leitura de Grande Sertão Veredas é para quem gosta de literatura. Realmente não é leitura fácil para uma narrativa de mais de quinhentas páginas de um monólogo do Riobaldo, contando sobre seu amor por Diadorim, que ele desconhecia ser mulher em trajes de jagunço, nos sertões de Minas, narrados sob uma ótica subjetivista de Guimarães Rosa. Mas penso que vale a pena a tentativa de conhecer este universo maravilhoso posto pelo autor. Que no conto “Sorôco, sua mãe e sua filha”, acaba eternizando sem querer a expressão Trem de Doido, que a mineirada inda usa para manifestar espanto por um assunto fora do comum.
O trem de doido, descrito no conto, é o trem que levava doentes mentais para o antigo hospício de Barbacena. Para nunca mais voltarem. E quero terminar com a leitura do conto “A terceira margem do rio”, versado para filme por Nelson Pereira dos Santos e música de Milton Nascimento. É a história de um homem que deixa tudo para viver em uma canoa, sem nunca mais pisar em terra firme. Uma metáfora da escolha para a solidão consentida e o abandono da vida medíocre que ele não tinha como transformar, tornando-se um esquecido e repudiado, mesmo quando, anos depois, acena para a possibilidade da volta.
Mas a vida é assim mesmo, não?
Wilson Daher, Psiquiatra e escritor; membro acadêmico da Arlec