Diário da Região
ARTIGO

'Orguio di sê caipira'

Nas festas juninas, o capiau não se sente homenageado, mas, ao contrário, ridicularizado

por Jocelino Soares
Publicado em 25/06/2022 às 21:11Atualizado em 26/06/2022 às 09:52
Jocelino Soares (Reprodução)
Jocelino Soares (Reprodução)
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O caboclo não precisava “oiá na foinha” pra saber que o mês de junho estava chegando. Bastava “ispiá” nas cercas de arame farpado, nas árvores à beira das estradas para ver dependuradas as belas flores do cipó de São João. Seu desabrochar anunciava que o mês das festas juninas chegou. Essa, a data mais aguardada e a mais triste também. Explico: nas cidades se comemoram as datas dos santos, mas de um modo que não agrada o matuto. Nas escolas, nos clubes, nas ruas e, hoje, nos condomínios, crianças e adultos se apresentam com figurinos remendados, chapéus de palhas esgarçados e, pior ainda, com os dentes tingidos de preto, imitando cárie. O capiau não se sente homenageado, mas, ao contrário, ridicularizado.

Essa figura do “Jeca Tatu”, criado, por Monteiro Lobato, é um estereótipo, ela nunca existiu. O homem do campo fazia questão de manter uma “muda” de roupa nova para ir à cidade. Inclusive, dava nome a ela de “ropa di i à missa”, tal era a preocupação de se apresentar bem ante o pessoal da vila. As mulheres colocavam seus melhores vestidos, calçavam seus melhores sapatos, usavam brincos, passavam batom e, no rosto, pó de arroz ou rouge, água de colônia Alma de Flores e, para se protegerem do sol, belas sombrinhas coloridas. As crianças, acompanhando os pais, também vestiam roupas de passeio. Os homens, além da vestimenta de “dia santo”, usavam o indefectível chapéu, não a palheta, mas, de feltro. Dava ar elegante. Ao cruzarem com outros caboclos ou outras caboclas, levavam a mão direita até a aba do chapéu para a saudação, “bão diiiia, bas tarrrde ou bas noooite”. Ao adentrarem qualquer ambiente, tiravam-no em sinal de respeito. Para os bailes, usavam ternos de linho 120 passado com ferro à brasa deixando o vinco impecável. Os sapatos, muito bem cuidados, eram tratados com a graxa Parquetina ou ODD, aquelas das latinhas redondas, lembram? Após o banho, água de cheiro Príncipe Negro e, para os cabelos, brilhantina Grostóra.

Segundo o sociólogo Antônio Cândido, quem nasce no litoral é caiçara, quem nasce na capital é urbano. Não sendo da capital nem do litoral, somos todos caipiras. Mas não aquela figura tosca, cheia de vermes, preguiçosa, indolente, criada por Monteiro e que, aliás, ele se arrependeu anos mais tarde de havê-la criado, mas o mal estava instalado. A triste figura usada por laboratório estadunidense atrelando a imagem ao Biotônico Fontoura causou grandes estragos. No ano de 1942, o tal laboratório fez circular em todo o Brasil 16 milhões de almanaques, distribuídos gratuitamente nas farmácias com a imagem do Jeca Tatu. E, mais, criou a imagem do personagem infantil, jeca tatuzinho.

Darcy Ribeiro, em “O povo brasileiro”, fala da “Paulistânia”, movimento dos desbravadores paulistas – caipiras – em direção às regiões do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e Paraná. A nossa cultura, costumes, música, dança e nossa culinária se estenderam muito além de nossas fronteiras, influenciando outros povos, mas não temos o orgulho de ser caipiras. O queijo – caipira – que hoje chamam de Minas, era feito nas fazendas de gados em nosso estado muito antes de adentrarem os campos das Gerais.

Nossos antepassados eram fortes e valentes, foram desbravadores desse mundão de meu Deus! Por isso, o caipira não se sente homenageado quando vê as pessoas indo às festas juninas vestidas a caráter. Nós, caipiras, não somos essa triste figura.

Jocelino Soares, – Artista Plástico

Diretor da casa de Cultura Dinorath do Valle; membro da Academia Rio-pretense de Letras e Cultura