Diário da Região
ARTIGO

Guerra de narrativas

Política fervilha em torno de narrativas oportunistas para extrair dos fatos a versão

por João Francisco Neto
Publicado em 13/09/2021 às 23:18Atualizado em 13/09/2021 às 23:32
João Francisco Neto (João Francisco Neto)
João Francisco Neto (João Francisco Neto)
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Se existe uma expressão que está na moda hoje, sobretudo no meio político, é a palavra “narrativa”. Quase todas as argumentações políticas giram em torno da chamada “construção de uma narrativa”, que, resumidamente, vem a ser uma forma de apresentar os fatos que nem sempre condiz com a realidade. Porém, a costura dos detalhes é tão bem elaborada que faz com que a narrativa fique parecendo ser a verdade, ainda que não o seja. Daí que, muitas vezes, a verdade ou a realidade das coisas podem ser comprometidas por narrativas pautadas em “mentiras bem contadas”. Obviamente, cada narrativa é “construída” segundo os interesses da pessoa ou do seu grupo.

Um exemplo clássico de narrativas que formam uma realidade paralela é apresentado no livro “1984”, de George Orwell. Nessa obra, a manipulação dos fatos é quase que absoluta, fazendo imperar um revisionismo de significados que destrói a memória e as referências fáticas da realidade das coisas. Assim, no mundo de “1984”, a guerra é paz; a escravidão é liberdade; a ignorância é força; os campos de concentração são campos de lazer, etc.

Embora isso pareça novidade, há séculos a filosofia vem tratando das chamadas metanarrativas históricas (ou grandes narrativas), que criavam consensos universais. Um exemplo de metanarrativa foi o Iluminismo, que acreditava que a razão e seus produtos – o progresso científico e as tecnologias – levariam a humanidade à felicidade, emancipando-a dos dogmas medievais e dos antigos mitos e superstições. O marxismo seria outro exemplo de metanarrativa. Para os marxistas, a história seria impulsionada pelo confronto entre a burguesia e o proletariado, confronto esse que, ao final da revolução, resultaria numa sociedade sem classes.

Todavia, a história e a própria realidade acabaram por mostrar que essas teorias não funcionaram conforme suas narrativas. A partir do final da 2ª Guerra Mundial (1945), iniciou-se a desmonte dessas grandes narrativas históricas, que, por séculos, vinham mobilizando a humanidade. Em 1979, foi lançada pelo filósofo francês Jean-François Lyotard a obra central sobre esse tema: “A Condição Pós-Moderna”. O abandono e a superação dos dogmas das metanarrativas marcam, então, o início da chamada “pós-modernidade”.

Vale aqui ressaltar que atualmente esse debate filosófico anda um tanto quanto em baixa, ao mesmo tempo em que o mundo da política fervilha em torno das narrativas, cada vez mais oportunistas, para extrair dos fatos a versão mais conveniente. Nesse sentido, em recente artigo publicado no jornal “Folha de S. Paulo” (edição de 08/09/2021), o Procurador de Justiça Roberto Livianu escreveu: “Narrativa, originalmente, é relato ou história narrada por alguém de forma fiel. Mas tem se transformado em verdade paralela, subterfúgio ou reinterpretação para construir uma nova versão: trocamos a verdade pelas narrativas”. Pode-se, então, concluir que, do confronto de tantas versões, assistimos hoje a uma verdadeira “guerra de narrativas”, cuja principal vítima é a verdade.

João Francisco Neto, Advogado, doutor em Direito Econômico e Financeiro (USP); Monte Aprazível​