Ditaduras e mulheres
A democracia, embora imperfeita, garante aos cidadãos divergir e lutar por um país melhor e inclusivo

As ditaduras, sejam elas de direita ou de esquerda, sempre são nocivas para os cidadãos do país, pois as eleições são indiretas, ou quando acontecem falta transparência, o regime é autoritário, o poder é concentrado nas mãos de uma pessoa ou grupo, os direitos mais elementares podem ser cancelados, as manifestações populares são proibidas e reprimidas, existe censura e não existe participação dos cidadãos nas decisões.
Nesse contexto, as ditaduras e as sanções delas decorrentes atingem mais nocivamente as mulheres e todas as demais pessoas em situação de vulnerabilidade.
Na vizinha Venezuela, a grande mídia noticia habitualmente que o sofrimento da população pela ausência das necessidades mais básicas se deve a um processo ditatorial e antidemocrático, mas também não pode ser descartada a possibilidade desse sofrimento estar ligado aos ataques e sanções econômicas impostas por outros países. Seja qual for o motivo, a população iniciou um êxodo para os países vizinhos em busca por melhores condições de vida.
Sob a gravíssima situação imposta, mulheres professoras, pedagogas, comissárias de bordo, advogadas, migram de seu país levando apenas seu desespero e esperança de sobrevivência para si e seus filhos, chegando nos países vizinhos sem nenhuma estrutura, passando a dormir nas ruas, ou quando muito em abrigos superlotados, sujeitas a todo tipo de violência e se sujeitando a todo tipo de trabalho, mesmo com a qualificação profissional trazida.
Presenciei essa situação no Estado de Roraima, onde chegam venezuelanas aos milhares, e de todas, conheço de perto a história de D, uma mulher que é pedagoga e trabalhava em uma escola, tinha casa, carro, moto e morava com a mãe e três filhos.
Com a doença da mãe, que não tinha como se tratar, e convivendo com a fome, pois seu salário só dava para comprar um pacote de arroz e uma cartela de ovos em um mês, vendeu carro e moto e migrou para o Brasil, onde chegou e passou a viver nas ruas, pois os abrigos já estavam lotados, se alimentava de salsicha e ficou sem tomar banho, situação que durou por dias, até que a solidariedade de outro venezuelano e de um brasileiro permitiu que se abrigasse em uma borracharia no período noturno para tomar banho e dormir.
Depois de alguns dias sozinha nas ruas, encontrou outra mulher venezuelana na mesma situação e ambas passaram a se apoiar na tentativa de ter mais segurança, especialmente na hora de dormir.
Sua mãe faleceu na Venezuela, mas D não desistiu de lutar, e com o tempo e a solidariedade de alguns brasileiros não xenofóbicos, sim, porque além de tudo elas enfrentam a xenofobia, ela foi conseguindo trabalhos como ajudante de pedreiro, faxineira, enfim, trabalhos braçais que jamais recusou e continua não recusando, sempre mantendo a esperança de uma vida melhor para ela e os filhos.
Hoje, já trouxe os filhos, conseguiu um local para morar e trabalha todos os dias da semana sem descanso, sempre agradecida aos brasileiros que lhe estendem a mão.
Essa história de vida real demonstra que a democracia, embora imperfeita, garante aos cidadãos divergir e lutar por um país melhor e mais inclusivo.
Maria Aparecida Cury, Juíza de Direito Aposentada, Presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher e Integrante do Grupo Mulheres na Política