Diário da Região
Painel de ideias

A menina da rua de trás

Ainda assim, vivia por ali, rondando o pátio como quem circula na fronteira de um desejo

por JOÃO PAULO VANI
Publicado há 7 horas
João Paulo Vani (João Paulo Vani)
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João Paulo Vani (João Paulo Vani)
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Nos anos 1970, quando no sertão de São José quase tudo tinha cheiro de manga madura e poeira quente, o colégio de freiras, sempre imponente, fazia nascer respeito só pelo silêncio que guardava. Àquela altura, já era uma escola tradicional, com mais de meio século de história, memória preservada nos limites de seus muros altos, por trás dos quais meninas de laços impecáveis aprendiam muito mais que a grade básica. Filomena, porém, vinha da rua de trás, da humilde casa do alfaiate, de uma realidade que não comportava mensalidades. Ainda assim, vivia por ali, rondando o pátio como quem circula na fronteira de um desejo. Brincava à sombra das mangueiras, seguia o som do sino e observava as alunas com encantamento e curiosidade.

A menina nutria duas grandes admirações: Irmã Filomena, que compartilhava com ela o nome e a ternura no olhar, e Madre Marta, cuja autoridade parecia feita de firmeza e acolhimento. Tanta afeição despertou um sonho secreto: ser freira. Bastava vê-la caminhando atrás das religiosas para perceber, no passo curto e atento, a crença infantil de que aquele mundo também poderia ser seu.

A vida, porém, não se guiava pelo encanto. Filomena passou mal na casa da tia, uma casa úmida e escura que, escondida entre frondosas mangueiras, emanava um odor ocre. Com a febre cada vez mais alta, sua mãe decidiu descer da Rua General Glicério e seguir direto para o INPS, na Rua Bernardino de Campos. Da Sala 7, a central de emergências da Previdência Social, veio a notícia da internação. Foram para a Santa Casa, prédio cuja beleza, àquela altura, nada dizia à menina; tudo o que ela poderia perceber era o corredor comprido, o cheiro de éter e a pressa das enfermeiras. O diagnóstico chegou com o medo: reumatismo. Vieram duas longas semanas de hospital, marcadas por injeções que ardiam, noites de tosse e o som distante dos sinos e das missas. Ali, entre lençóis ásperos e janelas altas demais, perdeu não só a escola, mas toda a preparação para a primeira comunhão. Enquanto as colegas posavam de vestido branco, ela seguia no leito, ouvindo histórias da celebração que lhe escapara.

Até que, certa manhã, a sorte se abriu em silêncio. Madre Marta perguntara por ela, dizendo que algumas crianças não deveriam ficar de fora das celebrações que marcam uma vida. Agendou-se, então, uma missa só para Filomena, na pequena capela do colégio, celebrada pelo padre Gaspar. A menina chegou tímida, num vestido simples que a mãe preparara com esmero; sua emoção era tamanha que parecia encher a nave inteira. Ao receber a hóstia, sentiu o coração bater como se uma porta tivesse sido, enfim, destrancada.

Mas o que nunca esqueceu foi o que veio depois. A Madre Superiora pousou a mão em seu ombro e a convidou para tomar o café da manhã. Filomena, que só via banquetes na televisão preto e branco, encontrou diante de si pão quentinho, manteiga macia, frutas cortadas com capricho e um chocolate que fumegava. Segurava a xícara com as duas mãos, não por medo de derrubar, mas por não acreditar que o momento fosse verdade.

Anos mais tarde, quando a vida a levou por outros caminhos, Filomena seguiu guardando aquela manhã como quem guarda um relicário íntimo. Não era somente a primeira comunhão. Era o gesto que lhe dissera, sem palavra alguma, que o mundo podia ser generoso, mesmo com as meninas da rua de trás.

PROF. DR. JOÃO PAULO VANI

Presidente da Academia Brasileira de Escritores (Abresc), é pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação da USP. Escreve quinzenalmente neste espaço aos sábados