Um passado que não passa…
A força simbólica da canção de Chico está justamente em lembrar que o autoritarismo não se impõe somente pela violência direta, mas também pela anestesia coletiva

Escrita no limiar da redemocratização, “Vai Passar”, de Chico Buarque, sempre foi associada à esperança de superação da ditadura militar. No entanto, relida à luz do presente, a canção soa menos como celebração e mais como advertência. Seu samba-enredo não fala somente do passado autoritário, mas da fragilidade permanente da democracia.
A imagem da avenida por onde passa um samba popular representa o espaço público: é ali que a política se torna visível e o conflito se oferece ao acompanhamento da sociedade. Esse princípio foi incorporado juridicamente pela Constituição de 1988 ao consagrar a publicidade dos atos públicos, a liberdade de expressão e a imunidade parlamentar. Democracia, nesse sentido, não é somente decisão formal, mas exposição, debate e responsabilidade.
O risco contemporâneo não está na censura explícita, típica dos regimes autoritários clássicos, mas em formas mais sutis de contenção. Episódios recentes no Congresso Nacional, como a truculência da polícia legislativa contra parlamentares e a interrupção do sinal da TV Câmara por determinação do presidente da Casa, Hugo Motta, não podem ser tratados como incidentes menores. Eles afetam diretamente o direito da sociedade de acompanhar o processo político e esvaziam o princípio da publicidade, pilar do Estado Democrático de Direito.
Quando o conflito é retirado de cena e tratado como desordem, a política deixa de ser mediada pela palavra, sendo administrada como problema técnico. Não se cala o debate; interrompe-se sua visibilidade. O resultado é uma democracia formalmente preservada, mas substantivamente enfraquecida. Hannah Arendt já advertia que o espaço público não se define somente pela existência de instituições, mas pela possibilidade de aparição dos sujeitos, de sua palavra e de sua ação. Onde essa aparição é bloqueada, mesmo que por meios administrativos, o poder se distancia da legitimidade e se aproxima da coerção.
A força simbólica da canção de Chico está justamente em lembrar que o autoritarismo não se impõe somente pela violência direta, mas também pela anestesia coletiva. O “sanatório geral” a que ele se refere pode ser lido hoje como a imagem de instituições que continuam operando, mas perderam coerência ética interna. Michel Foucault ajuda a compreender esse deslocamento ao mostrar que o poder moderno atua menos pela proibição e mais pela gestão dos fluxos: de corpos, discursos, imagens e tempos. A avenida continua aberta, mas o desfile é controlado; o samba passa, desde que não desorganize o enquadramento.
“Vai passar”, portanto, não deve ser lida como certeza histórica, mas como interrogação política. A democracia não avança por inércia nem se protege sozinha. Ela depende da preservação do espaço público, da transparência institucional e do reconhecimento de que o dissenso não é ameaça, mas condição da vida democrática. Quando a palavra é interrompida e a imagem é cortada, o que se coloca em risco não é somente a política do momento, mas o próprio pacto constitucional que sustenta a experiência democrática.
PROF. DR. JOÃO PAULO VANI
Presidente da Academia Brasileira de Escritores (Abresc), é pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação da USP. Escreve quinzenalmente neste espaço aos sábados