O filme Conclave
Sem proselitismo e de forma equilibrada (como em geral convém às obras de arte), o filme narra, numa costura de sombras e segredos, as tensões vaticanas

‘Conclave’, de Edward Berger, baseado no romance de 2016 do britânico Robert Harris. Ficção em paralelo à realidade, estreou em 2024, um ano antes da morte do Papa Francisco e rituais que elegeram o Papa Leão XIV. Coincidências cronológicas atiçaram atenções de setores que desdenham das religiões como “ópio do povo”. Sem proselitismo e de forma equilibrada (como em geral convém às obras de arte), o filme narra, numa costura de sombras e segredos, as tensões vaticanas entre moderados, isolacionistas, globalistas ecumênicos e conservadores. E reformistas em consonância com grupos organizados, desconstrutores de códigos e tradições socioculturais. Assim, o tema supera o eclesial e se abre como alegoria das desuniões e intolerâncias que permeiam nossos dias.
A instaurar correlações com o real, o filme instigou materialistas de pouca espiritualidade e extremistas de esquerda e direita. Eles, em regra, cancelando dúvidas, valem-se de “certezas”. Na abertura do Conclave, a homilia do cardeal Thomas Lawrence (o ótimo ator Ralph Fiennes) expõe, com trêmulos gestos, agudo silogismo filosófico-religioso: “Há um pecado que passei a temer acima dos outros: A Certeza. A certeza é inimiga da união, inimiga da tolerância. Nem mesmo Cristo, no final, tinha certeza. ‘Meu Deus, por que me abandonaste?’, gemeu na agonia da cruz. Nossa fé é algo vivo porque anda de mãos dadas com a dúvida. Se houvesse apenas a certeza e nenhuma dúvida, não haveria mistérios e a necessidade da fé”. Os encantos da fé, ouso dizer, amparam as crenças no porvir.
Guiado por fachos de luzes e brumas, a plateia espia por frestas os panos encarnados, sinuosos olhares. Contempla do lado de dentro o consenso da fumaça branca esperada no lado de fora. Mas um personagem rompe as linhas dessa trama: Nomeado “in pectore” (“no peito”) pelo Papa anterior, surge Vincent Benítez, arcebispo mexicano de Cabul, Afeganistão. Sem ser levado a sério, de início, faz a prece do jantar: “Dai-nos a bênção, Senhor, e as dádivas que recebemos de Vossa generosidade”. Quando alguns se preparam para se sentar, ele prossegue: “Abençoai aos que não podem partilhar dessa refeição. Enquanto comemos, bebemos, ajudai-nos a recordar dos famintos, sedentos, doentes e abandonados”. E sobre seres presentes, mas “invisíveis”, roga a Deus pelas “freiras que prepararam para nós esta comida”.
Deus, como divino criador ou ideia platônica, e sendo o Um, é masculino ou feminino? Somos feitos, como ideal ou divindade, à sua imagem e semelhança. O notável nesse filme é que Benítez, eleito o Papa Inocêncio XIV, é intersexo. Afirma: “Meus cromossomos me definem como mulher, mas também, como você me vê, sou um homem”. Tudo narrado pelo farol suave de meditações profundas. O filme ‘Conclave’ é uma tese sobre o escurão das incertezas e, como ficção, sublime ato fé.
ROMILDO SANT’ANNA
Crítico de arte e jornalista. Livre-docente pela Unesp, é membro da Academia Rio-pretense de Letras e Cultura (Arlec). Escreve quinzenalmente neste espaço aos domingos