Diário da Região
PAINEL DE IDEIAS

Natal em tempos de fratura

A mensagem mais incômoda é a aceitação de pessoas descartáveis. Celebrar o Natal não é fugir da realidade. Ao contrário, é combater o que desumaniza

por Mara Lúcia Madureira
Publicado há 3 horasAtualizado há 2 horas
Mara Lúcia Madureira (Mara Lúcia Madureira)
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O Natal sempre se apresentou carregado de luz, mensagens de conciliação e esperança. A celebração natalina, em um país atravessado por desigualdades estruturais e polarização política, exige mais do que símbolos; requer lucidez. Um Natal meramente decorativo, esvaziado de coerência e sensibilidade social, tem mais a ver com alienação coletiva e menos com a tradicional festa cristã.

Vale lembrar os milhões que convivem com a insegurança alimentar, a precarização do trabalho, o descrédito nas instituições e um cansaço nauseante com disputas ideológicas mesquinhas. A política, em vez de ser instrumento de organização do bem comum, tornou-se palco de ressentimentos, competições identitárias vazias, depravação moral e tudo de pior para uma nação. O resultado é uma sociedade fragmentada e emocionalmente exaurida.

Nesse cenário, o feminicídio se impõe como uma das expressões mais brutais da falência social e institucional. Mulheres assassinadas, longos históricos de violência, ameaça e negligência, enquanto o Estado falha em prevenir, proteger e responsabilizar os agressores. Não se trata de episódios isolados, mas de uma cultura que naturaliza o controle e a eliminação do corpo feminino.

Outro aspecto lamentável é exposição sistemática de crianças em redes sociais. A busca de visibilidade, travestida de afeto, revela uma forma contemporânea de exploração com baixa crítica social. Corpos infantis transformados em conteúdo, emoções expostas à lógica algorítmica, sem consentimento real ou compreensão dos riscos, aprofunda assimetrias de poder e naturaliza a violação da privacidade. A fragilidade institucional permite a antecipação de formas sutis de violência, cujas consequências recaem justamente sobre quem deveria estar protegido.

O Natal, porém, é uma história de exclusão. A questão original não fala de poder ou abundância, mas de vulnerabilidade infantil e deslocamento. Ignorar o fato histórico de se tratar de um nascimento marginalizado em território imperial é transformar o Natal em peça de marketing.

Talvez a pergunta mais honesta, neste fim de ano, não seja “o que vamos comemorar?”, mas “o que estamos normalizando?”. Normalizamos a desigualdade como destino, a violência como rotina, a indiferença como mecanismo de defesa. Normalizamos também uma política que, frequentemente, falha em proteger os mais frágeis, enquanto exige deles resiliência infinita, com seu discurso hipócrita de meritocracia.

Refletir o Natal, hoje, é reconhecer que não há paz possível sem justiça social, nem conciliação verdadeira sem enfrentamento das causas do sofrimento coletivo. É recusar a ideia de que problemas estruturais se resolvem apenas com boa vontade individual, ao mesmo tempo em que se reconhece a responsabilidade ética de cada cidadão.

O Natal não pede silêncio diante da injustiça, mas discernimento. Não pede ingenuidade e mentiras, mas compromisso genuíno. A mensagem mais incômoda é a aceitação de pessoas descartáveis. Celebrar o Natal não é fugir da realidade. Ao contrário, é combater o que desumaniza.

Que este Natal nos desperte do sonambulismo. Que nossa consciência nos traga luz e sensatez. Que não sirva para esquecer o ano difícil, mas para perguntar, com seriedade, que país estamos construindo e a quem ele realmente pertence.

MARA LÚCIA MADUREIRA

Psicóloga Cognitivo-comportamental em Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço às quintas-feiras