Minha saga no Magistério
Deixei família, amigos, clube, namorado e embrenhei-me pela roça, para lecionar numa escola de pau-a-pique, que tive que barrear com meus alunos

O encantado mundo das palavras e das letras tornou-me professora. Espero ardentemente ter sido iluminada o suficiente para ter cumprido esse papel de maneira eficiente e humanitária.
Lembro-me muito bem, praticamente saindo da adolescência e já embrenhada numa fazenda, no dito popular, “nos cafundós de Judas”. v. Era uma tulha, que dividida ao meio, servia para sala de aula e do outro lado, para guardar cereais.
Dava aulas para as segundas, terceiras e quartas séries iniciais. Havia outra professora, mais velha do que eu, que lecionava para a primeira série. A aventura não terminava aí. Dormíamos também numa casa de pau-a-pique, cuja porta era uma cortina de chitão em fundo azul com flores vermelhas. Todos os dias, pontualmente às quatro e trinta da manhã, fizesse chuva ou sol, éramos acordadas, pelo rádio, que ficava bem próximo à nossa “porta”, sobre o guarda-louças. No maior volume possível, as músicas caipiras invadiam nosso cotidiano, sem dó, nem piedade e não havia mais cristão que conseguisse dormir.
Passei medo e fome. Como não havia energia elétrica, era impossível levar alimentos perecíveis. Nunca comi tanta abóbora batida com arroz. E cambuquira, que é a flor da abóbora e atualmente conhecida como iguaria das mais sofisticadas.
O único meio de transporte, era a jardineira. Partia de manhã e quando conseguia chegar ao seu destino, minha cidade, estava próximo do horário de retorno. Nessa época, havia aulas aos sábados e como lecionava à tarde, só podia ir para minha casa no domingo. Quando tinha sorte chegava em torno das onze horas e tinha que voltar no mesmo dia, às quinze. Chegava já ao anoitecer e me sentava num grande tronco de árvore abatida, postada na frente da única e salvadora venda da região. Ficava triste e sozinha, imaginando o meu lazer, os bailes, o namorado e minha família, distantes.
Meu pai, quando escolhi a escola que era chamada de emergência – o nome já diz tudo, foi levar-me. Conosco, a supervisora de ensino, D. Nina, brava feito o capeta. Viajamos numa Kombi azul. Por causa do calor não dava para fecharmos os vidros. E haja poeira.
Quando chegamos, fiquei sabendo tempos depois, que meu pai teria dito, para a dona da casa que nos abrigaria: “essa aí do jeito que é enjoada, não fica aqui três dias”.
Equívoco dele. Tinha fortes razões para lá permanecer: queria ensinar a ler e escrever. Foi o que fiz por alguns anos.
E imagino que hoje ao lerem esses escritos, alguns pensarão que foi há muito, mas há muito tempo atrás e não em São Paulo, obviamente. Engano. Claro que muitas coisas se modificaram num espaço de tempo relativamente curto. Algumas para melhor. Outras nem tanto, incluindo-se aqui, a perda do respeito que gozávamos junto à sociedade, causado em grande parte, pelo tratamento desrespeitoso dos nossos governantes ao provocarem o apagão da educação nas últimas décadas.
MERLI DINIZ
Professora, advogada, poeta e cronista. Vice coordenadora da Comissão de Direito e Literatura da 22ªSubseção da OAB Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço às quintas-feiras