Diário da Região
PAINEL DE IDEIAS

Inventário do invisível

Que venha o novo algarismo, com suas promessas vãs e suas correrias, pois, no fim das contas, a ficção do tempo é a única história que realmente sabemos contar

por Sérgio Clementino
Publicado há 4 horasAtualizado há 1 hora
Sérgio Clementino (Sérgio Clementino)
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Há um fenômeno curioso que toma conta das ruas e das almas quando o calendário começa a ficar sem folhas. É uma espécie de vertigem coletiva, um frenesi que mistura cansaço e esperança. Dezembro não é apenas um mês, é um tribunal que julga fatos passados e futuros.

De um lado, surgem aqueles que tentam resolver em quinze dias o que foi negligenciado em trezentos. É o “corredor do último minuto”. Parece que o mundo vai acabar na virada do ano. Existe a ilusão de que, se não fecharmos todas as gavetas agora, elas transbordarão e impedirão a passagem para o novo tempo.

Do outro lado, há os arquitetos do amanhã, que traçam linhas rígidas para o futuro. “Ano que vem eu serei fit”, “ano que vem eu lerei doze livros”, “ano que vem eu serei uma pessoa melhor”. Projetamos pra janeiro uma capacidade de disciplina que nunca tivemos nos outros onze meses. É como se a mudança de um algarismo no ano fosse capaz de operar uma cirurgia espiritual, removendo nossos vícios e instalando virtudes. As resoluções de Ano Novo são o gênero literário de ficção mais lido do mundo.

No fundo, essa agitação esconde uma verdade que preferimos ignorar enquanto estouramos o champanhe: o tempo é uma ficção. A natureza não conhece o Ano Novo. Para a árvore, o rio ou a estrela, o tempo é um fluxo contínuo que não se importa com calendários gregorianos. Nós, humanos, criamos segundos, dias e anos como quem coloca cercas num campo aberto, apenas para não nos sentirmos perdidos na imensidão do eterno. Só que o universo não está nem aí para o seu calendário. O planeta Terra não dá uma "sacudida" quando cruza a linha imaginária da meia-noite do dia 31. Criamos o tempo porque, se não tivéssemos essas pequenas divisões, enlouqueceríamos com a continuidade infinita das coisas.

A virada do ano é algo que inventamos para nos dar o direito de recomeçar. Precisamos desse ritual de passagem. Precisamos acreditar que o tempo será renovado, que o “velho” ficou para trás e que o “novo” é uma folha em branco, sem as manchas de café e os erros de grafia do passado. É uma catarse coletiva: se todos concordarmos que o ano acabou, então ele realmente acabou.

Mas a beleza dessa ficção reside justamente na sua utilidade. Se o tempo é uma invenção nossa, também é nossa a liberdade de dar a ele um sentido. O réveillon não muda nada no cosmos, mas muda algo dentro de nós. É o momento em que nos permitimos a trégua. Paramos de correr atrás das pendências e de planejar o impossível por alguns instantes para simplesmente olhar para o céu e acreditar que a vida pode ser diferente.

Talvez a grande sabedoria esteja em entender que cada dia é, tecnicamente, uma virada de ano. A renovação que buscamos no dia 1º de janeiro está disponível em todas as manhãs, mas só a celebramos no final de dezembro porque o calendário assim nos diz. Que venha o novo algarismo, com suas promessas vãs e suas correrias, pois, no fim das contas, a ficção do tempo é a única história que realmente sabemos contar. Feliz Ano Novo!!

SÉRGIO CLEMENTINO

Promotor de Justiça em Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço às terças-feiras