Diário da Região
PAINEL DE IDEIAS

Cheiro de naftalina nas ondas do rádio

Um amigo se refere ao programa como ‘avós do Brasil’ – uma referência à presumível idade provecta das poucas pessoas que, imagino, ainda tenham o hábito de ouvi-lo de vez em quando

por José Luís Rey
Publicado há 2 horas
José Luís Rey (Divulgação)
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José Luís Rey (Divulgação)
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Sou do tempo em que a “Hora do Brasil” começava com a voz cavernosa do locutor anunciando: “Em Brasília, dezenove horas...”. Tempos depois, percebi que o texto mudou para: “Sete da noite em Brasília...”.

Deve ter sido, ao longo dos mais de 80 anos de transmissão, a maior inovação do sisudo noticiário radiofônico, apresentado o originalmente por quase todas as emissoras brasileiras. Nas poucas ocasiões em que o ouço, tenho a impressão de estar diante de um daqueles rádios antigos modelo T40G, da Telefunken alemã, fabricado em 1928, ou de um 830C, da Phillips holandesa, de 1933, cuja caixa de madeira era arredondada na parte superior.

Também me lembro que o programa era aberto com os acordes imponentes de “O Guarani”, de Carlos Gomes, hoje edulcorados em versões em ritmo de samba, choro, capoeira, sei lá o que mais. Mais um pouco e convidam o Michel Teló para fazer o prefixo na linha do “Nossa... Assim você me mata...”.

Soube, já faz algum tempo, de um retrocesso na briga histórica das emissoras brasileiras contra a obrigatoriedade de retransmissão do noticiário anacrônico e apresentado em horário inadequado, que coincide com a hora do rush, quando as grandes cidades brasileiras têm sede de informações que as auxiliem a contornar os percalços do trânsito. Parece que um grupo de emissoras paulistanas, antes desobrigadas pela justiça desse estorvo, receberam a determinação de voltar a fazê-lo, enquanto outras – sabe-se lá por que – continuavam liberadas, ou autorizadas a jogá-lo para mais tarde.

Porém, muito pior do que o cheiro forte de arbitrariedade que exala da decisão é o fato de ainda existir uma obrigatoriedade típica dos períodos autoritários e, além disso, em uma época em que os avanços das telecomunicações oferecem uma disponibilidade de informação que dispensa essa tutela do Estado. Esse noticiário que recende a naftalina entrou para o Guinness Book em 1995 como o programa de rádio mais antigo do Brasil, façanha que teria muito mais significado se ele não fosse obrigatório.

Por essa vitalidade compulsória, leio que também se tornou o mais longevo programa radiofônico de todo o hemisfério sul. Dizem que foi criado por um amigo de infância do presidente Getúlio Vargas – Armando Campos – e foi inicialmente chamado de “Programa Nacional”, apresentado nos anos 30 pelo locutor Luís Jatobá.

Depois, foi chamado de “Hora do Brasil” até 1971, quando o presidente Médici o rebatizou como “Voz do Brasil”. Um amigo se refere ao programa como “avós do Brasil” – uma referência à presumível idade provecta das poucas pessoas que, imagino, ainda tenham o hábito de ouvi-lo de vez em quando.

Há alguns anos, numa conversa fiada sobre apelidos curiosos que a criatividade do brasileiro costuma atribuir às pessoas, o saudoso jornalista João Roberto Curti contou ter conhecido alguém a quem se referia como “Hora do Brasil”.

- É que ninguém ligava para as coisas que ele dizia...

JOSÉ LUÍS REY

Jornalista em Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço aos domingos