Banquete do Paixão
Tudo num clima que beira o dionisíaco, como convinha e convém aos festins amorosos helênicos e paulistanos do Bixiga (extensivo à Mooca, onde se reza a San Gennaro, padroeiro de Nápoles)

Um tema musical acompanhou-me na leitura de ‘O Banquete do Paixão’ e sua urdidura literária de cenas jocosas, alusões eróticas e, mormente, de adultérios. Lembrava-me o revezamento animado de dançantes a entoarem repentes da tarantella siciliana, na sequência de casamento do filme ‘O Poderoso Chefão I’ (1972), do ítalo-americano Francis Ford Coppola. Há no tratado de infidelidades conjugais do prosador António Paixão, amante da Gaviões da Fiel e trovador do bairro Bixiga, um entra e sai de personagens narradoras, palpiteiras, jactanciosas, desde aparições do Frei Totò Molisano, a entradas incidentais de um tal de Dr. Noronha, erudito versado em artes literárias e que, segundo as más línguas, estaria de olho na bela Gigi Dell’Amore, não sei se ficante ou esposa do próprio escritor António Paixão. Esse detalhe ficcional configura um alinhavo estilístico interessante: No livro creditado ao heterônimo, o criador real comparece como criatura de ficção.
Nem tanto filosófico, porém etílico e etnológico (o Bixiga é reduto da italianada imigrante que ajudou na evolução e licenciosidades matrimoniais de São Paulo), não há como não aproximar, pelo menos foneticamente, ‘O Banquete do Paixão’ (2025) ao ‘O Banquete’, de Platão (380 a.C.?). No relato grego, composto basicamente de diálogos homoafetivos, debatem-se as gradações do Amor (Eros), das variedades carnais (a gravidez do corpo) à gravidez da alma – o amor platônico. A obra paixônica (neologismo de António Paixão) especializa-se na natureza, pretextos e sequelas das “dores de corno” como atos adúlteros, vulgarmente mencionados como “puladas de cerca”. Tudo num clima que beira o dionisíaco, como convinha e convém aos festins amorosos helênicos e paulistanos do Bixiga (extensivo à Mooca, onde se reza a San Gennaro, padroeiro de Nápoles).
O texto do luso-brasileiro António Paixão, heterônimo do jurista e escritor Durval de Noronha Goyos Junior, chega a lembrar digressões iconoclastas e pré-modernistas de Juó Bananère [João Bananeiro], pseudônimo do poeta parodista candidato à “Gademia Baolista de Letras” [Academia Paulista de Letras], e do pós-modernista, cronista satírico Stanislaw Ponte Preta. Porém, nem sátira, nem paródia. Vemos a mediação entre o ensaísmo e notações histórico-literárias em contextos diegéticos. Passeio entre autores greco-romanos, poetas e prosaístas europeus da Idade Média à modernidade, os asiáticos, hispano-americanos e brasileiros em situações de adultério. A António Paixão, entretanto, não interessam clichês intelectuais-acadêmicos do tipo “será que Capitu traiu Bentinho?”. De forma descontraída, realiza convite universalista sobre assunto relativamente insólito entre os estudiosos, um tabu nos tratados de Histórias da Literatura. Eis um livro que nos põe defronte de secretas teias e arapucas da paixão.
ROMILDO SANT’ANNA
Crítico de arte e jornalista. Livre-docente pela Unesp, é membro da Academia Rio-pretense de Letras e Cultura (Arlec). Escreve quinzenalmente neste espaço aos domingos