A masculinidade tóxica contemporânea
A autonomia feminina ainda desperta reações que vão da humilhação à fúria, do desprezo ao assassinato

Na última semana, três casos de feminicídio, violência doméstica e tentativa de feminicídio dominaram o noticiário, enquanto inúmeros outros são silenciados pela rotina da brutalidade e sequer se tornam públicos. Um influenciador agrediu a namorada, o ex-namorado atropelou e arrastou a mulher pela Marginal Tietê, e um colega assassinou duas trabalhadoras. Os três episódios revelam a mesma engrenagem cultural: a ideia de que a mulher existe sob a tutela emocional do homem. Homens inseguros não suportam mulheres que deixam de cumprir a função imaginada para elas. A autonomia feminina ainda desperta reações que vão da humilhação à fúria, do desprezo ao assassinato.
O influenciador Calvo do Campari construiu seu público encenando superioridade masculina como virtude. A agressão a mulheres não é mera fantasia performática; é modo de vida. O homem que atropelou a ex-namorada reagiu ao abandono e à quebra de território, como se o corpo da mulher fosse propriedade e, uma vez subtraído, devesse ser destruído. No caso das colegas assassinadas, o mesmo princípio se desloca para o ambiente de trabalho. Mulheres em cargos de chefia, que representam contraponto ou desacordo, tornam-se gatilhos de ódio para certos homens.
A natureza desses acontecimentos ultrapassa os limites psiquiátrico e moral; é estrutural. A cultura ainda educa homens para interpretar o “não” feminino como desobediência e a liberdade da mulher como ataque pessoal. A machosfera, esse ecossistema digital que transforma ressentimento masculino em identidade, amplifica o que já estava enraizado. Ali se cria a pedagogia do controle: a mulher como adversária a ser conduzida, corrigida ou desacreditada. Esses espaços criam monstros, justificativas e aplaudem homens intolerantes à existência feminina dissociada de sua conveniência.
Os episódios refletem o fracasso de um modelo de masculinidade com poderes ilimitados e o colapso diante da igualdade de gênero. Muitos homens conseguem se reorganizar, crescer e revisar a si mesmos. Outros, incapazes de lidar com frustração e limite, reagem com a violência típica de quem confunde afeto com posse e diferença com ameaça. A sociedade ainda falha em reconhecer o problema, em vez de disfarçá-lo como tragédia isolada.
Não haverá mudança enquanto continuarmos tratando a violência contra mulheres como um desvio e não como resultado de uma pedagogia cultural que ainda oferece aos homens superioridade como destino e às mulheres submissão como expectativa. A cada caso extremo, assistimos apenas ao momento em que essa engrenagem perde o verniz e mostra seu funcionamento interno. E a pergunta não é por que esses homens fazem o que fazem, mas por que seguimos formando homens incapazes de aceitar a existência feminina para além de suas demandas e carências.
O fato é simples e devastador: enquanto a mulher continuar sendo o espelho onde o homem tenta se perceber engrandecido, ela continuará correndo risco. A violência não nasce do excesso de liberdade feminina, mas da falência de uma masculinidade que não sabe conviver com o mundo real — um mundo onde os corpos das mulheres não lhe pertencem e onde o amor não é direito, mas relação. É essa a verdade que ainda resistimos a encarar.
MARA LÚCIA MADUREIRA
Psicóloga Cognitivo-comportamental em Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço às quintas-feiras