A César o que é de César e a Deus o que é de Deus
O espaço de fé e contrição agora é palco performático. O vocabulário empresarial se infiltrou no discurso do empreendedorismo espiritual, voltado à gestão da abundância e propósito lucrativo

Umas das questões mais complexas de nosso tempo é a junção do fenômeno religioso como empresa, poder político e o mal social que disso emerge. Nas últimas décadas, muitas igrejas passaram a operar segundo a lógica de mercado. O culto se transformou em produto, o fiel em cliente e Deus, marca registrada.
O espaço de fé e contrição agora é palco performático. O vocabulário empresarial se infiltrou no discurso do empreendedorismo espiritual, voltado à gestão da abundância e propósito lucrativo. A promessa de salvação pela prática do bem foi substituída pela versão teológica neoliberal de prosperidade.
A pobreza, um problema social, converteu-se em falha moral e a fé passou a ser medida em cifras. O templo virou balcão de negócios com seu púlpito-palanque ocupado por um influenciador moral, orientador do voto e do consumo. O dízimo e as ofertas representam aplicações, no banco celestial, com a suposta garantia de bênçãos e fortuna.
A simbiose entre igreja e política opera por meio de mecanismos de controle afetivo, econômico e ideológico. O bem e o mal são moldados conforme os interesses institucionais. O mal social emergente dessa fusão ultrapassa a corrupção econômica e atinge a corrupção simbólica por meio do esvaziamento da espiritualidade e do caráter. O fiel sente-se justo em obedecer e o líder, santo por enriquecer. Nesse consórcio de inversão de valores, o sofrimento desperta repulsa e a concorrência suplanta a solidariedade.
A religião convoca à adesão, não à consciência. O sujeito busca um pai todo-poderoso (Deus-líder-pastor) que lhe prometa segurança e prosperidade. Uma reprodução da dinâmica da exploração caracterizada por dependência, servidão e perda da autonomia crítica. É a velha perversão do egoísmo travestido de fé e desigualdade, de vontade divina.
A relação do explorador da fé com o poder é libidinosa. A satisfação está na sensação de onipotência que a subjugação produz. O explorador não nasce isolado. Ele é produto e cúmplice de uma cultura colonial que normaliza hierarquias e injustiças. Uma herança legitimada por narrativas de mérito, progresso e do pacto de silêncio de uma sociedade cúmplice que o recompensa.
Qualquer cristão deve se lembrar da resposta de Jesus à armadilha política dos fariseus e herodianos: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Para Ele, Estado e Igreja devem funcionar sem a fusão de esferas. Tributos, leis civis e deveres sociais pertencem ao Estado. A autoridade última sobre a consciência e a dignidade humana pertencem a Deus.
A frase continua atual e toca nas tensões contemporâneas sobre o autoritarismo estatal, vigilância excessiva, controle ideológico e da moralidade íntima; necessidade de um Estado laico com liberdade de crença e culto, distinção entre política e doutrinas religiosas e os conflitos morais da vida pública nos debates sobre bioética, direitos sobre o próprio corpo, políticas de drogas, entre outros.
A esfera pública laica e o respeito à interioridade constituem o princípio básico de que a consciência não é objeto de coerção estatal, ideia central para democracias modernas e direitos humanos.
MARA LÚCIA MADUREIRA
Psicóloga Cognitivo-comportamental em Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço às quintas-feiras