A banalidade do extraordinário
Recuperar o espanto, o juízo e a ideia de humanidade comum talvez seja o gesto mais raro para o próximo quarto de século — e também o mais urgente

O primeiro quarto do século XXI pode ser lido como a consolidação de um tempo governado pela exceção. Entre o 11 de setembro de 2001 e a recente devolução de reféns israelenses pelo Hamas, acumulam-se acontecimentos que, à primeira vista, pareceriam excessivos até mesmo para a imaginação literária. No entanto, eles não somente ocorreram como foram rapidamente absorvidos pelo cotidiano político e midiático, produzindo um deslocamento profundo do que entendemos por normalidade.
Desde o início do século, o medo deixou de ser reação e tornou-se método. A ameaça difusa e permanente substituiu a deliberação por protocolos, a política por gestão, o juízo por urgência. A exceção, antes concebida como ruptura momentânea da ordem, passou a funcionar como regra silenciosa. Nesse processo, a violência contra civis foi progressivamente convertida em dado técnico, em custo calculável, em estatística tolerável. O escândalo moral deu lugar à adaptação.
A aceleração econômica, tecnológica e informacional intensificou esse cenário. A fluidez descrita por Bauman transformou-se em fadiga histórica: vínculos frágeis, instituições porosas, identidades instáveis e, sobretudo, a dificuldade crescente de imaginar futuros compartilhados. O horizonte do possível encolheu. A política passou a operar em ciclos curtos, sempre reativos, sempre defensivos, incapazes de oferecer narrativas que não sejam de contenção ou sobrevivência.
A pandemia de COVID-19 radicalizou essa condição, e a vida biológica tornou-se o centro absoluto da decisão política, organizada por gráficos, curvas e indicadores. Paradoxalmente, essa centralidade da vida não impediu a banalização da morte. Milhões pereceram sem que o luto coletivo encontrasse tempo, linguagem ou ritual. A morte perdeu densidade simbólica e tornou-se ruído de fundo de uma crise interminável.
É nesse contexto que a ideia de necropolítica se impõe como chave interpretativa. Não se trata somente do poder de matar, mas da capacidade de expor determinados corpos a uma morte lenta, administrada e socialmente aceitável. Guerras assimétricas, campos de refugiados, periferias abandonadas, populações descartáveis: zonas nas quais a vida perde valor político e moral. Algumas mortes mobilizam indignação; outras desaparecem sem deixar vestígios éticos.
A guinada global a uma direita extremada reforçou essa racionalidade. Discursos autoritários prosperaram ao converter medo em identidade e ressentimento em projeto. Democracias formais passaram a conviver com a corrosão sistemática de seus próprios fundamentos, enquanto a exclusão e a violência seletiva se tornaram respostas legitimadas pela retórica da ordem e da segurança.
Talvez a chave para compreender por que tudo isso parece, ao mesmo tempo, absurdo e plausível, esteja na antiga intuição aristotélica retomada por Auerbach: é verossímil que o inverossímil aconteça. O século XXI confirma essa tese inquietantemente; a excepcionalidade invade o ordinário, o impensável torna-se previsível, e o espanto — condição do pensamento — se esgota.
O risco maior do nosso tempo não é a violência em si, mas a adaptação silenciosa a ela. Quando a exceção se naturaliza, quando o intolerável se torna administrável, resta somente a sobrevivência nua. Recuperar o espanto, o juízo e a ideia de humanidade comum talvez seja o gesto mais raro para o próximo quarto de século — e também o mais urgente — que ainda podemos chamar de político.
PROF. DR. JOÃO PAULO VANI
Presidente da Academia Brasileira de Escritores (Abresc), é pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação da USP. Escreve quinzenalmente neste espaço aos sábados