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Olhar 360

STF e o afastamento do Estado Democrático de Direito

por Marco Feitosa
Publicado há 8 horas
Marco Feitosa (Marco Feitosa)
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A recente decisão do ministro Gilmar Mendes na ADPF 1.259-MC, restringindo a legitimidade para denunciar ministros do STF por crimes de responsabilidade exclusivamente ao Procurador-Geral da República, é um caso alarmante de malabarismo hermenêutico a serviço de um corporativismo institucionalizado.

Em vez de interpretar a Constituição à luz do princípio democrático e da participação cidadã, a decisão se vale de sofismas jurídicos para justificar uma verdadeira canetada corporativista, que retira do povo instrumento legítimo de fiscalização de autoridades, previsto desde 1950 no art. 41 da Lei do Impeachment.

A Lei 1.079/1950, ainda que anterior à Constituição de 1988, assegurava expressamente o direito de todo cidadão denunciar ministros do STF ao Senado Federal. Essa previsão não era fruto de descuido legislativo, mas sim de um modelo em que o controle social sobre os poderosos é direito e dever do povo, uma vez que denunciar autoridade por abuso de cargo é, antes de tudo, exercício de cidadania, não um ataque às elites estatais.

A decisão, contudo, transforma o PGR em guardião único da atuação dos ministros, como se a sociedade fosse incapaz de discernir condutas incompatíveis com a função pública. Esse raciocínio é profundamente elitista e antidemocrático. Pior: ele desmonta a ideia de que as instituições devem ser transparentes e responsivas ao povo.

Ao vedar a participação direta dos cidadãos, cria-se um círculo fechado de blindagem mútua entre cúpulas do Judiciário e do Ministério Público, ambos livres de críticas populares, enquanto o cidadão vira mero espectador submisso.

Não se trata de defender o impeachment por mero desacordo de decisões judiciais, prática claramente abusiva e repudiada. Trata-se, sim, de preservar o direito de questionar e de agir contra condutas que extrapolem a atividade jurisdicional: corrupção, uso do cargo para fins pessoais ou atos incompatíveis com a dignidade do cargo etc.

Essas questões não demandam técnica jurídica exclusiva, mas sim senso ético e político, atributos que o povo possui em igual ou maior medida que membros da elite institucional.

Longe de proteger o Estado de Direito, tal decisão o esvazia. Quando autoridades de cúpula constroem muralhas jurídicas para se proteger de pedidos de responsabilização vindos da sociedade, estão, na verdade, minando a própria democracia. A cidadania não pode ser condicionada à benevolência de um cargo público; ela é direito originário, inalienável e indispensável à vigência de uma justiça verdadeiramente real.

A participação popular na fiscalização de qualquer poder é um dos pilares do Estado Democrático de Direito. Fechar essa via sob o pretexto de “proteger a independência judicial” é, na verdade, autocratizar a Justiça, colocando-a acima de qualquer crítica legítima. É a lógica do “deixem-nos julgar em paz, sem que o povo nos perturbe”, postura que remete a regimes autoritários.

Em tempos de desconfiança nas instituições, essa decisão aprofunda o fosso entre o povo e o poder. A cidadania não pode ser condicionada à autorização de um procurador (figura historicamente subserviente ao presidente da vez), tampouco pode ser neutralizada sob a roupagem técnica do “excepcionalismo judicial”.

O perigo à democracia não vem do povo fiscalizar, mas das autoridades se autorregularem, isolando-se do escrutínio público. Ao restringir o impeachment a um só ator institucional, o STF não protege a Constituição, protege a si mesmo. E, ao fazê-lo, afasta-se do espírito republicano que deveria guiar a República.

Marco Feitosa

Advogado e coordenador do Estado de São Paulo do Movimento Livres