Diário da Região
Olhar 360

Quando o discurso externo encontra o interno

O político opta por um discurso fácil e cômodo, mas o que evidencia é seu completo despreparo para lidar com situações muito mais complexas

por Beto Braga
Publicado há 1 hora
Beto Braga (Divulgação)
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Beto Braga (Divulgação)
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“Nenhum jornalista quis ficar naquele lugar”. A declaração do chanceler alemão, Friedrich Merz, ao deixar Belém soou como arrogância colonial e foi repudiada por autoridades brasileiras e, em especial, paraenses. A frase não foi apenas um tropeço diplomático: revelou um padrão histórico.

Países enriquecidos pela exploração colonial tratam regiões do Sul Global como se fossem inferiores, enquanto exibem sua prosperidade como fruto exclusivo de competência própria. Mas esse olhar de cima para baixo não é exclusividade europeia. Ele encontra eco dentro das nossas próprias cidades, quando comerciantes, políticos e parte da população preferem

expulsar moradores em situação de rua a lidar com as raízes da desigualdade.

A mesma lógica aparece nas duas situações: não queremos ver o problema, apenas afastá-lo da vista. A fala de Merz carrega um subtexto evidente: existe o “país bonito, organizado e civilizado” (o deles) e existe “aquele lugar” do qual se deve ir embora o quanto antes.

Ao dizer isso sobre Belém, sede da COP30, o chanceler reativa a velha narrativa colonial segundo a qual a riqueza do Norte resulta de mérito intrínseco, e não de séculos de extração de recursos, apropriação e assimetria comercial.

Esse discurso encontra um espelho incômodo no comportamento de parte dos nossos próprios

cidadãos. Quando moradores de rua são tratados como estorvo visual e não como consequência de falhas estruturais (falta de moradia acessível, desemprego, saúde mental,

dependência química, ausência de políticas públicas) repetimos a lógica de que “quem atrapalha a paisagem” deve ser removido.

Merz chamou Belém de “aquele lugar”. Nós chamamos nossas pessoas vulneráveis de “aquele problema”. A expulsão simbólica, seja de uma cidade amazônica no discurso europeu, seja de uma calçada no cotidiano local, carrega a mesma raiz: a crença de que ordem, beleza e prosperidade se mantêm através da negação do incômodo, e não da transformação das causas. É uma lógica que cria cidades limpas apenas na aparência, mas moralmente sujas por dentro.

Belém, justamente por sediar a COP30, expôs essa contradição global e doméstica. O mundo veio discutir sustentabilidade, justiça climática e futuro comum. Mas não há futuro sustentável quando tratamos populações inteiras como descartáveis. E não há autoridade moral para responder ao preconceito europeu enquanto reproduzimos, em menor escala, o mesmo mecanismo de exclusão.

Nesse contexto, quando a solução de um político eleito e remunerado para resolver os problemas da sociedade se apoia em uma política de escondê-los, em vez de enfrentá-los, e,

quando confrontado sobre isso, diz que "quem não gosta da solução que leve o problema para sua própria casa", isso mostra, além de um baixo intelecto, uma fuga de suas responsabilidades.

O político opta por um discurso fácil e cômodo, mas o que evidencia é seu completo despreparo para lidar com situações muito mais complexas.

Ora bolas! Se a solução é dizer ao cidadão, que paga os impostos e remunera o político, que ele deve se virar, a pergunta que fica é: para que serve esse político? Se a declaração do chanceler foi ofensiva, ela também funcionou como espelho. Mostrou como ainda aceitamos, de fora e de dentro, discursos que justificam privilégios e naturalizam

desigualdades. E nos lembra que uma cidade verdadeiramente preparada para o futuro não é aquela que finge não ver seus conflitos, mas a que enfrenta suas raízes (com política pública, dignidade e inclusão).

A fala de Merz revelou muito sobre a visão colonial de parte do Norte Global. Nossa reação diante das pessoas em situação de rua revela muito sobre nós. Entre expulsar e resolver há um abismo ético. E é nele que se mede o tamanho real de uma sociedade.

Beto Braga

É empresário