Diário da Região
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Quando a genialidade não basta

O câncer de mama não distingue escolaridade, prestígio ou classe social. Atinge com a mesma indiferença tanto a mulher periférica quanto a cientista premiada

por Jurandyr Bueno
Publicado há 11 horasAtualizado há 10 minutos
Jurandyr Bueno (Jurandyr Bueno)
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No silêncio de consultórios e laboratórios, entre equações, fósseis, manuscritos e hipóteses que alteraram o curso da ciência, algumas das mentes mais brilhantes da história travaram – e perderam – uma batalha íntima, dolorosa e profundamente humana contra o câncer de mama.

Rachel Carson (bióloga), Maryam Mirzakhani (matemática), Cicely Saunders (médica), Charusita Chakravarty (pesquisadora). Mulheres que redesenharam os contornos do conhecimento em seus campos, desafiando convenções, estruturas patriarcais e fronteiras intelectuais. Nenhuma delas sobreviveu à doença que, ainda hoje, continua sendo a principal causa de morte por câncer entre mulheres no Brasil.

Em 2023, o país registrou mais de 74 mil novos casos de câncer de mama – uma média de 203 diagnósticos por dia. No mesmo ano, mais de 18 mil brasileiras perderam a vida para a doença, segundo dados do Instituto Nacional de Câncer (INCA).

Embora os avanços na Medicina sejam inegáveis, e as campanhas de conscientização se multipliquem, a realidade permanece alarmante: quase 40% dos casos ainda são diagnosticados tardiamente, quando as chances de cura diminuem drasticamente e os tratamentos se tornam mais agressivos, mais caros e mais traumáticos.

É nesse ponto que o debate deixa de ser apenas técnico para se tornar profundamente ético. O câncer de mama não distingue escolaridade, prestígio ou classe social. Atinge com a mesma indiferença tanto a mulher periférica quanto a cientista premiada. Talvez essa seja sua face mais desconcertante: escancarar a vulnerabilidade da condição humana mesmo entre aquelas que, aos olhos do mundo, pareciam invencíveis. A genialidade não imuniza. O diploma não protege. A reputação não impede que uma célula anômala se multiplique em silêncio.

Ainda assim, persiste a sensação de imunidade ilusória. Mulheres instruídas, bem informadas, com amplo acesso à saúde suplementar, frequentemente adiam seus exames por excesso de trabalho, por medo ou por uma falsa sensação de controle. Quando finalmente o tempo se impõe, ele já não é aliado – é sentença.

Esse comportamento, no entanto, não deve ser analisado como escolha individual desvinculada de contexto. É reflexo de uma cultura ainda marcada pelo silenciamento do corpo feminino e da saúde da mulher. Embora o Ministério da Saúde recomende a realização de mamografias a cada dois anos para mulheres entre 50 e 69 anos, a cobertura nacional foi de apenas 57,6% em 2023 – abaixo da meta de 70% estabelecida pela Organização Mundial da Saúde. Em diversas regiões do país, especialmente no Norte e Nordeste, esse índice não ultrapassa os 40%, evidenciando um descompasso grave entre a política de prevenção e sua execução real.

Embora apresente taxas de cura superiores a 90% quando diagnosticado nos estágios iniciais, o câncer de mama ainda representa uma sentença desnecessária para milhares de brasileiras.

É por isso que o Outubro Rosa precisa ultrapassar a estética dos laços e a linguagem palatável das campanhas publicitárias. A efeméride precisa dar lugar ao enfrentamento. Não basta vestir rosa. É preciso reivindicar políticas públicas eficazes, garantir o acesso universal e equitativo ao rastreamento mamográfico, valorizar a atenção primária e investir em campanhas educativas que toquem a realidade das mulheres concretas.

A morte de cientistas e pesquisadoras notáveis deveria provocar comoção, sim – mas também constrangimento. A pergunta que persiste é incômoda: se até elas, com conhecimento, recursos e redes de apoio, foram vencidas pela doença, o que resta às milhões de mulheres que vivem à margem, com exames adiados por meses e diagnósticos feitos às pressas, quando já há pouco a ser feito?

Que o Outubro Rosa seja, ao menos desta vez, mais do que um ritual no calendário. Que represente um compromisso real com a vida das mulheres.

Jurandyr Bueno

É jornalista e relações governamentais do Hospital de Base de São José do Rio Preto