Diário da Região
Olhar 360

O tempo não aposenta a imaginação

Mauricio de Sousa se mantém relevante em um campo tradicionalmente dominado por vozes jovens e pela lógica da efemeridade

por Jurandyr Bueno
Publicado há 5 horas
Jurandyr Bueno (Jurandyr Bueno)
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O sonho de todos é viver uma vida longa. Mas o verdadeiro privilégio é viver uma vida longa e produtiva. Envelhecer com relevância, com potência criativa, com espaço para continuar contribuindo com o mundo – eis um ideal que poucos alcançam. Mauricio de Sousa, aos 90 anos, não apenas o realizou: ele o redesenhou.

Numa sociedade que associa juventude à inovação e criatividade à pressa, um criador de 90 anos que ainda lança personagens, propõe ideias e molda o imaginário de novas gerações desafia a lógica dominante. Sua vitalidade criativa é, ao mesmo tempo, exceção e denúncia: ele ocupa um espaço que, para muitos, é negado muito antes da hora.

A realidade no Brasil é brutal: apenas 26% das pessoas com mais de 60 anos ainda estão no mercado de trabalho, segundo dados da "Pnad Contínua" de 2024. O etarismo – preconceito silencioso, porém estrutural – atua como um filtro implacável: quem envelhece, quase sempre, é deslocado dos centros de criação, decisão e visibilidade pública.

Envelhecer, por aqui, ainda é ser empurrado ao aposento – e não por acaso, essa é a raiz etimológica da palavra “aposentado”: aquele que é retirado da circulação e confinado ao espaço privado, ao quarto, ao silêncio. Enquanto em países de tradição hispânica, por exemplo, usa-se o termo “jubilado” – aquele que atinge a “idade da celebração". Aqui, ainda se pune o tempo vivido.

Mauricio de Sousa rasura esse roteiro. Ele se mantém relevante em um campo tradicionalmente dominado por vozes jovens e pela lógica da efemeridade. E faz isso não apenas com coerência estética, mas com um fôlego criativo impressionante. Em vez de se repetir, ele se reinventa. Sua obra, nascida no papel, transbordou para o audiovisual, o licenciamento, a educação, os quadrinhos digitais – e segue expandindo.

O mais fascinante é que ele nunca deixou de falar com – e por – crianças. Durante décadas, criou um universo inteiro com as ferramentas mais profundas da comunicação humana: humor, empatia e escuta. Suas histórias ensinaram gerações a reconhecer emoções, lidar com frustrações, compreender o outro. Mônica, Cebolinha, Magali, Cascão e tantos outros não foram apenas personagens: foram companheiros de formação emocional, alfabetizadores de afetos, professores silenciosos de ética e convivência.

Hoje, esse universo permanece vivo – e dialoga com crianças de outro tempo, que vivem em outra velocidade, mas que ainda reconhecem, naquele traço firme, um lugar seguro de identificação. Mauricio não parou no tempo. Ele o atravessou – e o reformulou.

É inevitável compará-lo a Walt Disney. Ambos moldaram infâncias inteiras e se tornaram sinônimos de imaginação e encantamento. Mas há uma diferença essencial: Disney morreu aos 65. Mauricio, aos 90, segue criando. E mais: enquanto o império Disney se ergueu sobre castelos distantes e mitologias estrangeiras, a Turma da Mônica nasceu nas ruas de bairro, nas escolas públicas, nos quintais da infância brasileira. Não apenas nos representou – nos compreendeu.

E talvez por isso sua permanência seja tão simbólica.

Sua obra é resistência cultural, mas sua figura é resistência existencial. Quantos outros criadores foram calados antes do tempo? Quantos talentos deixamos de ouvir porque envelheceram fora do padrão de aceitação? O Brasil precisa repensar, com urgência, sua forma de lidar com seus idosos: não como fardo, mas como reserva ativa de inteligência, criatividade e sabedoria.

Jurandyr Bueno

É jornalista e relações governamentais do Hospital de Base de São José do Rio Preto