O legislativo acima da Constituição

A Câmara dos Deputados deixou de ser um espaço central de produção legislativa para operar, progressivamente, como um mecanismo de autoproteção corporativa, baixa entrega institucional e apropriação indevida de prerrogativas do Estado. Não é figura de linguagem nem exagero retórico. Trata-se de um golpe de Estado legislativo. Silencioso, incremental e cuidadosamente disfarçado de normalidade institucional.
Não há tanques nas ruas, soldados nos prédios públicos ou pronunciamentos em cadeia nacional. E, curiosamente, é exatamente por isso que muitos insistem em afirmar que “não há golpe”. Como se o século XXI ainda exigisse fardas, coturnos e canhões para que a democracia fosse corroída. O golpe contemporâneo é mais eficiente, ele não ocorre contra as instituições, mas a partir delas.
Steven Levitsky e Daniel Ziblatt descrevem esse processo como erosão democrática: quando regras são formalmente preservadas, mas sistematicamente distorcidas para atender interesses particulares. No Brasil, isso se materializa quando o Legislativo abdica de legislar com generalidade, técnica e impessoalidade e passa a usar o processo legislativo como instrumento de blindagem, captura orçamentária e chantagem institucional.
A produtividade da Câmara é baixa quando medida pelo que realmente importa: leis estruturantes, compatíveis com a Constituição e voltadas a problemas concretos do país. Em contrapartida, prolifera a produção de projetos simbólicos, casuísticos ou abertamente inconstitucionais. Muitos já nascem com endereço certo: o Supremo Tribunal Federal. Depois, os próprios autores desses projetos denunciam “ativismo judicial”, como se não tivessem fabricado deliberadamente o conflito.
Nada disso é acidental. Esse modelo convive perfeitamente com um Congresso que descobriu uma fonte de poder muito mais eficaz do que legislar: o controle direto do orçamento por meio das emendas impositivas. Instrumentos concebidos para complementar políticas públicas foram convertidos em moeda de barganha política, consolidação eleitoral e transferência opaca de recursos.
O Executivo perdeu capacidade de indução de políticas públicas. O Legislativo sequestrou atribuições executivas e, previsivelmente, não assumiu os deveres correspondentes. O resultado é um Estado fragmentado, sem estratégia, capturado por interesses locais.
Sintoma clássico de golpe institucional por erosão, não por ruptura. Paralelamente, a Câmara demonstra eficiência notável na defesa dos seus. Parlamentares condenados, presos ou em autoexílio transformam-se em causa corporativa. Discursos sobre “vontade popular” e “perseguição” surgem seletivamente. O que se protege ali não é a democracia, mas o mandato como escudo penal.
Isso vale para os partidos. Em vez de exigir transparência e responsabilidade, o Congresso se mobiliza para ampliar o fundo partidário, aliviar multas e flexibilizar regras (muitas vezes criadas pelos próprios deputados). O crescimento contínuo do fundo, independentemente da crise fiscal ou da confiança pública, não é coincidência: é sintoma.
Isso não é crise episódica. É método. E o método se replica nos legislativos estaduais e municipais. Em nossa cidade, vereadores da base do Executivo fazem malabarismos retóricos para justificar a não investigação de atos incompatíveis com padrões republicanos. Enquanto isso, produzem pirotecnia nas redes sociais (shows de rock, decoração de Natal, comentários sobre temas federais) para distrair do abandono da cidade e da falta de interesse em jogar luz sobre os atos do prefeito.
Eles não exercem seus mandatos. Encenam responsabilidade.
A democracia não morre apenas sob o ruído de tanques. Ela também apodrece no silêncio das votações mal explicadas, das emendas opacas e da autoproteção institucional.
E quando isso acontece, não há quartel. Há plenário.
Beto Braga
É empresário