Ecos de voz de mulheres silentes

Se o feminicídio em ambiente doméstico tem aumentado significativamente, o fato de um homicídio ser cometido por uma mulher sempre causa alguma estranheza porque não é próprio de sua natureza o uso de violência física. Por isso, o que ocorreu dias atrás em Icém, quando uma jovem mulher matou o seu próprio filho de três anos, com 16 golpes de canivete (Diário da Região, 1/12), gera perplexidade e comoção.
Filicídio é sempre estarrecedor, e o horror ganha dimensão exponencial, por razões intuitivas, quando cometido pela mãe. Quais seriam os motivos determinantes e circundantes de sua conduta, em suprimir a vida de alguém que ela mesma trouxe ao mundo, cuidadosa e hermeticamente embalado? São necessárias lentes multifocais para enxergar – ética e moralmente – comportamentos tão afrontosos à humanidade, monstruosas. Reflexamente, como as mulheres são vistas, e também medidas e julgadas.
Nesse compasso, revisitamos duas obras literárias de Leïla Slimani, jornalista franco-marroquina que escreve, sem retórica feminista planfetária e militante, narrando dilemas das mulheres contemporâneas quanto à maternidade, trabalho, independência, desigualdade.
Em suas obras “Canção de Ninar” (2016), pela qual recebeu o prêmio Goncourt da França , e no “O País dos Outros” (2020), ela retrata o cotidiano feminino de frustrações, renúncias e tensões. Explora o significado da mulher em estruturas sociais que domesticariam os seus corpos, desejos, afetos, gestos.
“Canção de Ninar” parte de um fato brutalíssimo, atroz: Louise, uma encantadora e afetuosa babá, assassina a facadas duas pequenas crianças da família para a qual trabalha. O conto recua para detalhar pressões invisíveis, solidão e servidão emocional. A despeito dos infortúnios, ela não é um monstro por essência, mas uma mulher comum, esmagada pelo acúmulo de silêncio e invisibilidade.
A autora recusa a patologização fácil, o diagnóstico moral ou psicológico. “Não há ninguém que nasce monstro. Não era monstro até o último segundo antes de matar. Ela se torna um monstro pelos seus atos. Seus atos é que são monstruosos”, afirma, recusando o conforto das explicações redentoras. Ela não inocenta nem condena, apenas conta. E, ao contar, restitui à violência uma densidade humana perturbadora.
“O País dos Outros” abre outro flanco de sua literatura, o da mulher em trânsito, estrangeira não apenas no país em que vive, mas... dentro de si. Mathilde é uma francesa que casa com um soldado marroquino e se muda para o Marrocos no pós-guerra. Entre o calor sufocante, a hostilidade do entorno e os códigos culturais que não domina, ela tenta construir um lar e um sentido de pertencimento. Mas há uma fratura de adaptação: ela pertence demais para ser apenas estrangeira, e de menos para ser aceita.
No imaginário doméstico, a mulher surge não como heroína incansável, mas como alguém que precisa estabelecer limites. A repetição da rotina torna-se emblema de uma existência ofertada ao outro, e ainda sorri em busca de reconhecimento. “Mathilde está sempre a pensar no desejo dos outros, não no seu”. Slimani quer mostrar o sofrimento silencioso das mulheres que fizeram coisas toda a vida, e em troca receberam muito pouca gratidão.
Aparências adquirem um simbolismo crucial, e as mulheres são submetidas a um rigoroso olhar normativo. Em Canção de Ninar, a babá tem piolhos e a sujidade é associada a uma mulher vista como primitiva, quase feiticeira. Em "O País dos Outros", Aïcha, filha de Mathilde, é obrigada a esticar e alisar os cabelos, uma opressão alegórica a exigir que mulheres se corrijam para serem aceitas. Marilyn Monroe, descolorindo os fios até queimar o couro cabeludo, é apenas uma face do mesmo espelho.
Esses escritos ecoam o esgotamento das mulheres que viveram para os outros e, em troca, receberam quase nada. Têm cunho político, não para oferecer explicações fáceis ou soluções reconfortantes, mas para afirmar que até os monstros têm uma biografia, e mesmo os silêncios femininos guardam uma política de resistência.