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A insanidade não era dele. Era nossa!

A história de Gerson, encerrada de forma brutal e simbólica dentro de um recinto de animais selvagens, não é apenas um episódio bizarro

por Jurandyr Bueno
Publicado há 6 horasAtualizado há 3 horas
Jurandyr Bueno (Jurandyr Bueno)
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Durante quase uma década, Gerson de Melo Machado, o “Vaqueirinho”, 19 anos, passou por abrigos, conselhos tutelares, presídios e audiências de custódia. Viu a Justiça determinar sua internação psiquiátrica semanas antes de entrar em uma jaula de leões no zoológico de João Pessoa. Mas já era tarde. Tinham apagado sua humanidade antes que pudessem prescrever o primeiro antipsicótico.

Quando ele foi reconhecido como doente, já não havia hospital onde coubesse o seu sofrimento. Porque o Brasil decidiu demolir os manicômios sem construir o que viria em seu lugar.

A história de Gerson, encerrada de forma brutal e simbólica dentro de um recinto de animais selvagens, não é apenas um episódio bizarro. É o espelho de um país que falhou em oferecer cuidado a seus cidadãos mais vulneráveis – e que transforma a loucura em crime, e o sofrimento em espetáculo.

A luta antimanicomial, que ganhou força nos anos 1980, nasceu para romper com os horrores dos antigos sanatórios. Era preciso acabar com aquele modelo. Mas a história de Gerson mostra o que acontece quando se destrói uma estrutura opressiva sem coragem – ou compromisso – de colocar algo no lugar.

Criaram-se os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), promissores no papel. Mas não vieram os recursos, nem os profissionais, nem a rede de suporte. O Brasil tem hoje cerca de 2.900 CAPS, número inferior ao recomendado pela OMS, que sugere ao menos um para cada 100 mil habitantes. O número de leitos psiquiátricos no SUS caiu de 50 mil, em 1990, para cerca de 18 mil em 2023, enquanto menos de 3% do orçamento federal do setor vai para saúde mental.

Enquanto o sistema público apodrecia por falta de investimento, os pacientes desapareciam. Não das estatísticas – mas das vidas que poderiam ter vivido.

Gerson foi um deles.

Filho de uma mãe com esquizofrenia, criado sob a sombra da miséria e da instabilidade psíquica, foi interpretado como “caso de conduta”. Pequenos furtos, atos impulsivos, explosões verbais – tudo serviu para rotulá-lo como "ameaça", e não como alguém em sofrimento. Foi preso quando precisava de abrigo. Contido quando precisava de cuidado. Esquecido quando precisava ser reconhecido.

E, como tantos jovens pobres e neurodivergentes no Brasil, teve no sistema prisional o único "acolhimento" do Estado.

Pior: sua dor foi transformada em entretenimento. Vídeos de Gerson viraram memes, piadas involuntárias. Seu sofrimento virou “conteúdo”, sua figura, caricatura. E sua morte, para alguns, foi celebrada como “justiça”.

Esse comportamento não é exceção. É cultura. A cultura de um país que prefere rir da loucura a acolhê-la.

Gerson queria cuidar de leões. Fantasiava com safáris, com domar feras – talvez tentando domar a si mesmo. A imagem do menino atravessando a grade não é só chocante: é profundamente simbólica. Ele não fez isso por ignorância. Fez porque não tinha lugar. Não encontrou abrigo na escola, nem no CAPS que nunca o atendeu.

E nós deixamos que isso acontecesse.

Não precisamos voltar aos manicômios. Mas tampouco podemos fingir que a luta antimanicomial foi vitoriosa só porque os muros caíram. A queda exigia – e ainda exige – a construção de alternativas viáveis, humanas e estruturadas.

O Brasil precisa, com urgência, de uma política pública de saúde mental que funcione.

Uma que enxergue os Gersons antes que eles sumam. Que os escute antes que virem estatística.

Porque o Gerson que morreu devorado por leões não estava em surto. Estava em silêncio, esperando cuidado.

E o país que permitiu que ele morresse assim não pode continuar fingindo normalidade.

Jurandyr Bueno

É jornalista especialista em Relações Governamentais e projetos para o Terceiro Setor