É preciso enfrentar o Leão
Decidir por um encontro no meio da crise de tarifas é algo complexo e não se resolve com uma citação literária. A referência, porém, pode lembrar que é melhor agir do que ficar parado

Diante da crise das tarifas, deve o Brasil falar com o polêmico líder da nação mais poderosa do planeta? Muitos analistas políticos dizem que não: veem baixa chance de êxito e temem que o nosso chefe de Estado seja insultado, como já ocorreu com outros presidentes em encontros recentes.
Na TV, um comentarista resgatou o precedente de Chamberlain, premiê britânico que, ao tentar conter a escalada nazista, reuniu-se com Hitler e aceitou a anexação dos Sudetos. O gesto não impediu a Segunda Guerra e ainda maculou a imagem do Reino Unido; uma “desonra”, diria Churchill. Com esse paralelo, ele conclui que uma conversa direta agora apenas somaria humilhação às perdas impostas pelas tarifas vigentes.
O ensinamento de 1938, contudo, não é barrar o diálogo, mas distinguir apaziguamento de negociação estruturada, com método. O quadro doméstico é crítico: empresas com vendas travadas, milhares de postos de trabalho ameaçados e uma economia dependente das exportações. A decisão de negociar não deve se orientar pelo temor de uma desfeita ao presidente, sobretudo porque a grande potência precisa de muitos produtos tropicais, como já demonstrou, e continua a negociar com outras nações.
Para enfrentar um gigante que nem sempre se guia pela racionalidade, é preciso ousadia. Miguel de Cervantes, que lutou na Batalha de Lepanto, tentou fugir da escravidão no Norte da África e foi preso, ao que tudo indica injustamente, na própria Espanha, mostra em seu romance clássico que é necessário agir mesmo nas piores circunstâncias. Ao cruzar com um carro que levava dois leões, presente do general de Orã ao rei da Espanha, Dom Quixote decide enfrentá-los. Ignora os apelos de Sancho Pança, de Dom Diogo Miranda (o Cavaleiro do Verde Gabão) e do leoneiro, que o alertam para o risco e a inutilidade do gesto. Ainda assim, o cavaleiro de La Mancha sustenta: quem busca êxito e reconhecimento precisa assumir riscos.
Diante da insistência do cavaleiro cervantino, Dom Diogo adverte: “a valentia que entra na jurisdição da temeridade mais tem de loucura que de fortaleza”. Sancho, apavorado e em lágrimas, tenta dissuadi-lo. Ainda assim, Dom Quixote arma-se, invoca Dulcineia e ordena a abertura da jaula. O leão, sem as grades, apenas se espreguiça, limpa-se e observa, sem atacar; em seguida, sem motivo aparente, vira-se e torna a deitar.
Encerrado o episódio e fechada a jaula, Quixote faz autocrítica e ressalta a iniciativa: “Sei que cometi uma temeridade exorbitante. Mas a valentia é uma virtude situada entre dois extremos viciosos: a fraqueza e a temeridade. Ainda assim, é preferível que o valente se aproxime do temerário a que desça ao inerme. Melhor pecar por excesso do que por falta: soa melhor ouvir que ‘tal cavaleiro é temerário e atrevido’ do que ‘tímido e medroso’”.
Decidir por um encontro presencial no meio da crise de tarifas é algo complexo e não se resolve, evidentemente, com uma citação literária. A referência, porém, pode lembrar que é melhor agir do que ficar parado. Além disso, o paralelo com Chamberlain não faz sentido, quando não anacrônico. Invocá-lo para justificar a inação, sob o temor de humilhação, desconsidera trunfos que o Brasil leva à mesa de negociação, sobretudo a força do seu agronegócio.
EVANDRO PELARIN
Juiz da Vara da Infância e Juventude de Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço às terças-feiras