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Como Prender um Pensamento

Se o corpo está trancado, como se tranca o cérebro? Como se prendem ideias antes mesmo que ganhem forma?

por Fernando Fukassawa
Publicado em 18/08/2025 às 22:56Atualizado em 19/08/2025 às 10:00
Fernando Fukassawa (Divulgação)
Fernando Fukassawa (Divulgação)
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A lei diz que preso pode ter diminuída sua pena por trabalho e por estudo, e para o STJ a leitura é uma forma de estudo. Mas, por ordem da Penitenciária Federal de Campo Grande, foram retidos os manuscritos de um preso que ousou fazer mais que ler: escrever um livro. Por quê? Elementar: porque ele está preso. E livros escritos por presos só podem ver a luz do dia depois que seus autores saírem da sombra, ou melhor, da cela. A medida obedece, com zelo tocante, ao manual do Ministério da Justiça que permite ao preso o direito de escrever... apenas para si mesmo! O texto pode ser um romance, poesia, confissão, manifesto, ou revelação divina...desde que jamais escape do presídio.

As folhas, assim que escritas, são recolhidas e arquivadas como meias velhas no fundo do armário da administração prisional. Estão seguras, não dos olhos da sociedade, mas dela mesma. Ninguém terá acesso a elas. Afinal, quem se interessa por literatura escrita atrás das grades, senão os cúmplices?

Os advogados do autor reclamam dizendo que isso viola a liberdade de pensamento, intrinsecamente ligado à liberdade de expressão, garantidas pela Constituição, pela Lei de Execução Penal, e talvez até o bom senso. Alegam que o manual, ao presumir que toda ideia pode ser uma senha cifrada do crime, condena o pensamento antes mesmo que ele termine a frase. Mas o Tribunal Regional Federal manteve a ordem. Evidentemente: se o sujeito está cumprindo pena, por que não condenar também seus parágrafos?

A questão chega ao Supremo Tribunal Federal, com pompa de dilema constitucional, mas o assunto é tão complexo quanto abrir e fechar os olhos. A pena de prisão serve para privar o corpo da liberdade de ir e vir e, sempre que possível, também a alma da liberdade de pensar, criar e comunicar. Tudo pelo bem da sociedade, que já tem problemas demais para lidar com as ideias de quem ela resolveu excluir.

A História está repleta de autores que escreveram na cadeia, ou nela estiveram. Hitler escreveu Mein Kampf na prisão, um best-seller internacional com edição até em Braille para cegos alemães, porque até na cegueira há mercado. Cervantes estava preso por falcatruas fiscais quando começou Dom Quixote, esse manual de delírios. Graciliano Ramos foi preso por causa da ligação com o partido comunista, e daí nasceu o livro Memórias do Cárcere. Jorge Amado esteve preso entre 1936 e 1937 por se opor ao Estado Novo. Camilo Castelo Branco escreveu na cela Amor de Perdição, preso pelo imprudente adultério com uma prima de sua esposa. A lista é longa e embaraçosa, porque ela mostra que celas, além de grades, produzem também literatura.

Se o corpo está trancado, como se tranca o cérebro? Como se prendem ideias antes mesmo que ganhem forma? Algemam-se as mãos, mas e quando essas mãos teimam em escrever o que o cérebro pensa? Talvez o medo esteja em que os presos revelem, com vocabulário perigoso, as misérias do sistema, os abusos velados, os silêncios cúmplices e a banalidade da opressão. Melhor não arriscar. Melhor mandar os manuscritos para o limbo junto com os sabonetes e escovas de uso pessoal. Se o pensamento não pode ser manifestado, se a fala não pode ser ouvida, e se a escrita não pode ser lida, então finalmente alcançamos a forma mais segura de liberdade de expressão: aquela que existe apenas no manual. Num Estado de Direito, até onde vai o direito de dizer que o Estado está errado? Sócrates ousou falar demais, e foi condenado porque ensinava que pensar é mais importante que obedecer.

A democracia, esse engenho humano capaz de produzir unanimidade na desilusão, vive dessa gangorra: liberdade demais, e ela implode; controle demais, e ela desaparece. A solução? Muito simples: suspender a liberdade para garantir que ela sobreviva. Embora a Constituição assegure como direito fundamental que “é livre a manifestação do pensamento” (art. 5°, IV), prendamos o pensamento, para proteger a sociedade do risco de... pensar.