Sinto Vergonha de Mim
A esperteza passou a vestir terno e gravata, e o caráter virou piada de esquina

Carta aberta ao meu cumpadi, Dr. Wilson Daher. Ele de Macaubal, eu de Vila Guebo — Neves Paulista. Me inspirei no poema de mesmo título de autoria, Cleide Canton.
Sinto vergonha de mim, meu cumpadi. Vergonha de ter acreditado que bastava ser honesto para endireitar o mundo. De ter orientado meus filhos, que a justiça sempre vence, que o bem prevalece, que a decência é virtude que não se negocia. Pois o tempo passou, o mundo virou de ponta-cabeça, e eu fico aqui, de coração miúdo, vendo a desonra desfilar em praça pública como se fosse medalha de honra. E o poste faz xixi no cachorro, o rato zomba do gato, e o povo aplaude.
Lá na roça era tudo tão diferente. Os negócios eram feitos na base do fio do bigode. E se alguém "roesse a corda", ficava desacreditado.
Esperamos por tempos melhores. E o que restou? Um povo cansado, descrente, aprendendo a calar para não se incomodar. A meninada cresce sem espelho, sem norte, achando bonito o esperto, o que leva vantagem. Me lembro da propaganda de cigarro, a "Lei de Gerson", onde o jogador dizia gostar de levar vantagem em tudo — e ensinava o povo a fazer o mesmo. Desde então, a esperteza passou a vestir terno e gravata, e o caráter virou piada de esquina.
A família se fez retrato antigo pendurado na parede da saudade. A palavra dada perdeu lastro, o compromisso ficou frouxo, e a verdade anda de cabeça baixa, com medo de apanhar. Tenho vergonha de mim por engolir a seco tanta desculpa furada, por ouvir mentira repetida até virar verdade. Por ver gente defender o indefensável sem corar o rosto.
O pior, cumpadi Wilson, é a impotência que escorre feito lágrima contida. A honestidade virou teimosia de poucos, e a decência, peça de museu.
Mesmo assim, sigo.
Não consigo abandonar o torrão onde plantei meus sonhos e enterrei meus medos. Ainda creio que o bem floresce, mesmo entre os espinhos. Que a luz, por menor que seja, há de vencer a escuridão da mentira.
E quando a desesperança me ronda, lembro das palavras de Ruy Barbosa — velhas de um século, mas vivas como nunca:
— De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, o homem chega a ter vergonha de ser honesto.
É por isso, cumpadi Wilson Daher, que sinto vergonha de mim.
Mas é também por isso que insisto em acreditar que, um dia, a vergonha vai mudar de lado — e a decência voltará a ter lugar de honra no coração dos homens de bem.
Jocelino Soares
Artista plástico. Pós-graduado Arte-educação. Membro da Academia Rio-pretense de Letras e Cultura