Diário da Região
Artigo

Sabedoria dos bichos

Se o bicho morto cai pro lado esquerdo, urubu não cheganem perto

por Jocelino Soares
Publicado em 31/08/2025 às 00:31
Jocelino Soares (Jocelino Soares)
Jocelino Soares (Jocelino Soares)
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Dia desses estive visitando o sítio do meu cumpadi e professor, António Sinhorini, no bairro rural da Matinha. Ele me recebeu de olhar marejado, voz pesada, e contou que o sítio fora vendido. A cidade, com seu passo de gigante, já bateu na beira da cerca. Onde ele nasceu e cresceu, agora haverá novos donos. A casa onde veio ao mundo, o curral que o pai levantou com as próprias mãos, a sombra da mangueira que guardava a meninice — tudo, com certeza, será posto abaixo, dando lugar a um condomínio de luxo.

Caminhando pelo terreiro, foi uma revoada de urubus que me chamou a atenção. Pairavam baixo, perto do corguinho. Meu amigo explicou que era por causa de uma vaca que, ao pastar rente à mata do IPA, foi picada por uma cobra. A pobre estava lá fazia dias, mas nenhuma ave de rapina se animava a devorá-la.

— Veja só, cumpadi — disse Sinhô, apontando com o dedo trêmulo. — É a sabedoria dos bichos. Ninguém contou a eles que a vaca morreu de picada de cobra. Mas se comerem da carne dela, sabem que vão morrer.

Esse comentário abriu a porteira da memória. Muito antigamente, lá nos confins do sertão, onde a poeira da estrada parece decorar o passo do cavalo, corria uma conversa antiga: se o bicho morto cai pro lado esquerdo, urubu não chega nem perto.

Lembro do velho Veloso, homem de fala mansa e chapéu gasto, que jurava de pés juntos nessa crença - era benzedô. Contava que, menino, viu um boi cair seco no pasto. Ficou lá três dias inteiros, imóvel, e os urubus só rodando no alto, espiando de longe, sem coragem de pousar. “Tava do lado esquerdo. Eu sei o que vi”, dizia ele.

Os doutores, por sua vez, têm outra prosa. Explicam que o urubu decide pelo cheiro, pelo frescor da carne, pelos sinais que o corpo solta. Se a morte vem de veneno ou doença, a ave sente no ar e recusa. Não é o lado que manda, mas o recado invisível que o cadáver espalha.

No fundo, entre o saber da roça e o saber da ciência, há um ponto de encontro bonito: o bicho não se arrisca no que pode matá-lo.

Prof. Sinhô ainda me explicou que o urubu enxerga detalhes a longas distâncias, inclusive cores e brilhos que passam despercebidos aos nossos olhos. Basta o gosto estranho para recusar.

Pois é, professor Sinhorini, eu também vou sentir saudades do sítio. Enquanto isso, lá estavam eles, no horizonte, rodando lento sobre a copa das árvores. Não era preguiça, era prudência. No chão, o corpo tombado guardava seu mistério.

Jocelino Soares

Artista plástico, pós-graduado – Arte-Educação. Membro da Academia Riopretense de letras e Cultura.