Resistência libidinal
Há poesia nos corpos que carregam mil funções e ainda reservam espaço para a própria chama

Nós atravessamos o dia como quem cruza um labirinto em chamas. Carregamos listas, expectativas, urgências. Movemos o mundo com mãos que amparam, que limpam, que corrigem, que atendem. Somos cobradas a ser múltiplas: mães, profissionais, amantes, cuidadoras, sensatas, doces, fortes. Corpos convocados a produzir, servir, sorrir. E mesmo assim, entre a exaustão e o fôlego curto, guardamos um território íntimo que o mundo não consegue capturar.
Há um erotismo silencioso na forma como insistimos em existir. Não o erotismo do olhar alheio, mas o que nasce na brecha entre um compromisso e outro. O calor que pulsa quando, por um instante, lembramos de nós mesmas. Uma chama que resiste à exploração cotidiana — que o capitalismo tenta apagar com cansaço — mas que continua ali, vibrando, teimosa, nossa.
O prazer que buscamos não é apenas físico; é também político. É o direito de sentir algo que não seja obrigação. É o direito de tocar o próprio desejo depois de ter tocado, o dia inteiro, as necessidades de todos ao redor. Em um mundo que exige produtividade permanente, o simples ato de querer se torna insubordinação.
Nós conhecemos camadas de nós que não se revelam à primeira vista. A cada ano, a cada queda, a cada dobra do corpo que o tempo escreve sem pedir licença, descobrimos novas zonas sensíveis — nem sempre na pele, às vezes na coragem. Envelhecer não significa apagar; significa acender por outras vias. Nosso prazer amadurece e deixa de ser performance. Torna-se bússola. Torna-se reivindicação.
Há poesia nos corpos que carregam mil funções e ainda reservam espaço para a própria chama. Há beleza em nós, que mesmo espremidas entre tarefas, encontramos um jeito de respirar fundo, fechar os olhos e sentir-nos inteiras por um instante. Sabemos que não fomos feitas para ser apenas ferramentas de trabalho ou objetos de expectativa. Sabemos que sustentar a própria vontade é uma forma de romper amarras.
E é nesse ponto — onde a vida pesa, mas o desejo insiste — que nasce o erotismo mais autêntico: o nosso. O erotismo de quem conhece a própria exaustão, mas também conhece o próprio instinto; de quem reconhece a exploração, mas se recusa a entregar a própria intensidade ao cansaço.
Afinal, mesmo quando o mundo tenta nos apagar, encontramos uma fresta para nos reacender. E esse acender nos permite transgressoras ancestrais!
Aline Stones
Professora, pedagoga e mestra em educação. Militante decolonial/anticolonial e membro do coletivo feminista ‘Mulheres na política’, de Rio Preto.
Texto escrito por Aline Stones
P rofessora, pedagoga e mestra em educação. Militante decolonial/anticolonial e membro do coletivo feminista ‘Mulheres na política’, de Rio Preto.