Quando a idealização feminina vira sentença de morte
Ataques físicos, psicológicos, sexuais e patrimoniais corroem a saúde mental

Entre as violências negligenciadas e sobrecarga invisível, mulheres transformam dor em risco de morte — e expõem a falência de uma sociedade que cobra demais e apoia de menos.
“Ela já não tinha mais tempo para a vida despreocupada que havia levado: ‘Filhos demais; serviços domésticos demais.’ Um dia, anos mais tarde, depois de lavar o piso da cozinha e da sala, vestiu sua melhor blusa de seda, abotoou a saia longa, colocou o chapelão e puxou o gatilho da espingarda do marido. Qualquer mulher viva sabe por que ela lavou o chão antes”, escreve Clarissa Pinkola Estés.
A cena é brutal e simbólica. Mesmo diante da decisão extrema, aquela mulher sentiu a obrigação de deixar tudo em ordem — um retrato de uma cultura que ensina as mulheres a carregarem o lar, os filhos e a aparência, ignorando sua dor mais íntima.
Quando o tema é suicídio, o desconforto é estrondoso. Ninguém quer encarar a morte. A escolha de tirar a própria vida expõe vulnerabilidades e tabus: medo, vergonha, preconceito. No caso das mulheres, o silêncio é ainda mais cruel. Espera-se delas força infinita e capacidade de suportar tudo. Uma tentativa de suicídio quebra esse mito da boa mãe, da esposa ideal, da cuidadora incansável.
Dados mostram que mulheres tentam o suicídio três vezes mais que homens, embora usem métodos menos letais. Já eles lideram as mortes consumadas. No Brasil, são 38 óbitos diários.
A violência é gatilho central. Mulheres expostas a agressões têm risco até quatro vezes maior de ideação suicida. Ataques físicos, psicológicos, sexuais e patrimoniais, somados à sobrecarga de quem cuida de tudo, corroem a saúde mental. Entre adolescentes, pesam bullying, violência sexual e pressão das redes; entre adultas, conjugalidades violentas; entre idosas, solidão e abandono. Em todas as fases, o fio condutor é o mesmo: sociedade que cobra demais e apoia de menos.
O suicídio expõe falhas das redes de apoio, das famílias e do Estado. Violências silenciosas também matam. Calar não protege; falar é chamamento à vida e ruptura de um pacto de silêncio mortal.
Erika Bismarchi
Mestra em Políticas Públicas, jornalista, escritora e assistente social. Idealizadora da Maria Violeta. Voluntária no Coletivo Maria Livre. Membra do Coletivo Mulheres na Política.