Profissões que o tempo leva
O mundo girou depressa, e a pressa empurrou essas profissões para o esquecimento

Meu amigo João Licurgo, morador de Ipiguá, foi quem sugeriu este tema.
Na colônia da minha infância havia sempre um som que me encantava: o bater compassado do martelo do Totonho sapateiro. Era um som firme, quase música, que se misturava ao cheiro da graxa e do couro. A oficina era um cubículo, com prateleiras cheias de formas de madeira e caixas de pregos. Ali dentro, o sapateiro parecia um mago. De seus dedos nasciam milagres: sapatos gastos voltavam a andar, sandálias estouradas ganhavam novos passos, botinas da roça resistiam mais uma jornada. A gente entrava descalço, às vezes com vergonha do furo na sola, e saía calçado de esperança.
Dentro de casa, minha avó ao costurar também fazia sua magia. A máquina de costura, com o pedal subindo e descendo, embalava o lar com o ritmo de uma cantiga. O tecido estendido era como tela em branco, onde ela pintava com agulha e linha. Vestidos nasciam, camisas ganhavam corpo, calças se transformavam em novas. Cada ponto tinha algo de carinho. Cada prova diante do espelho trazia riso das vizinhas e elogio da família. A costureira sabia de tudo, porque enquanto alinhavava também escutava — e escutar era parte de sua arte.
Hoje percebo que esses mestres do remendo eram mais que profissionais: eram guardiões de um tempo em que nada se perdia. O rasgo não era sentença de morte, mas convite para o conserto. O sapato ganhava sola nova, a calça herdada era ajustada, e até as esperanças pareciam se renovar.
Mas o mundo girou depressa, e a pressa empurrou essas profissões para o esquecimento. No lugar da oficina, abriram lojas iluminadas; no lugar da costureira, surgiram confecções em série, onde a roupa tem preço, mas não tem história. Os passos perderam o compasso do martelo, e as casas o canto da máquina de costura.
Mesmo assim, basta fechar os olhos para eu voltar à colônia simples, ouvindo o som do sapateiro pela manhã e o zunido da agulha no entardecer. É nesse instante que sinto a falta maior: não apenas das profissões, mas da paciência que elas nos ensinavam. O tempo de esperar pelo conserto, de valorizar o remendo, de acreditar que tudo, quando cuidado, pode durar mais.
Saudade é isso: perceber que não era só o sapato ou a roupa que eles costuravam. Era a vida da gente, alinhavada com calma, feita para resistir.
Meu cumpadi João, a máquina de costura da minha avó está comigo há anos — e ainda funciona.
Jocelino Soares
Artista plástico, pós-graduado em Arte-educação e membro da Academia Rio-pretense de Letras e Cultura.