O trabalho invisível que sustenta o fim de ano
As mulheres dedicam, em média, quase o dobro de horas semanais ao trabalho doméstico

Entre o Natal e o Ano-Novo, o país desacelera. Escritórios fecham, agendas afrouxam, crianças entram em férias, adultos em recesso e os discursos sobre renovação reforçam a ideia de descanso coletivo. No entanto, essa desaceleração não se distribui de forma equânime. Ela é profundamente seletiva.
Para as mulheres, especialmente aquelas responsáveis pela organização da vida doméstica e familiar, esse intervalo representa, historicamente, um aumento significativo da carga de trabalho não remunerado. O fim de ano escancara a engrenagem que opera silenciosamente ao longo dos meses: a desigualdade estrutural e a exploração feminina.
“O pai não come maçã”, “ela é vegetariana”, “acho que o filho dela é muito pequeno para comer passas”, “quase me esqueci que ele tem alergia à castanha”. O cardápio foi milimetricamente pensado; os ingredientes, pesquisados, escolhidos e preparados. A decoração combina. Os papéis de presente também. Muitas vezes, os próprios presentes foram escolhidos por quem lembra que “sua irmã calça 36” e que “ele não gosta de camisa azul-escura”.
A mesa está farta. O peru no ponto. O arroz soltinho — com passas e sem. Há opções para todos os gostos. As latas de cerveja vazias sobre a pia, as crianças correndo, o falatório alto anuncia que a comemoração começou. Mas nenhuma festa se organiza sozinha.
Entre o apito do micro-ondas e o copo sendo lavado, ela media a conversa entre o marido e o novo namorado da filha, a desavença das crianças, a discordância dos primos. Fecha a porta da geladeira e lembra que já está ficando tarde para a bisavó comer. Planejamento, compras, preparo de alimentos, limpeza, acolhimento, cuidado com crianças e pessoas idosas, mediação de conflitos e gestão emocional formam um conjunto de atividades que exigem tempo, esforço físico e disponibilidade psíquica.
Nada disso é circunstancial. Trata-se de um fenômeno estrutural, presente o ano inteiro. Insiste em aparecer com força justamente neste período, quando a assimetria se aprofunda. As mulheres dedicam, em média, quase o dobro de horas semanais ao trabalho doméstico e de cuidado em relação aos homens: cerca de 21 horas contra 11.
Esse cenário pesa ainda mais sobre mulheres pobres, negras, mães solos e aquelas inseridas em relações abusivas. Para muitas, o fim de ano não é apenas cansativo — é perigoso. O aumento do consumo de álcool, a convivência prolongada e a pressão econômica ampliam situações de violência doméstica, frequentemente romantizadas sob o discurso da “família reunida”.
Entre o peru e os fogos, enquanto o ano termina para uns, para muitas mulheres ele apenas se acumula. O trabalho que sustenta a celebração não aparece nas fotos, não entra na contagem do tempo livre, não gera reconhecimento — mas cobra o preço no corpo, na saúde mental e na vida. Talvez a virada mais urgente não seja a do calendário, mas a da pergunta que seguimos evitando: quem está realmente descansando enquanto tudo isso acontece?
Erika Bismarchi
Mestra em Políticas Públicas, jornalista, escritora e assistente social. Idealizadora da Maria Violeta e membra do Coletivo Mulheres na Política.