O problema do Brasil é o samba
Quando a vida cobra juros altos demais, o samba entra como anestesia popular

O problema do Brasil é o samba porque ele embriaga. Não derruba, não destrói, não aliena no sentido raso da palavra, mas entorpece. O samba é o ópio doce do brasileiro, essa substância invisível que não apaga a dor, apenas a torna suportável. E, convenhamos, suportar já é muito. Afinal, já se sabe há tempos que “rir pra não chorar” não é figura de linguagem, é método.
Quando a realidade aperta demais, quando a vida cobra juros altos demais, o samba entra como anestesia popular. Não vem para curar a ferida, mas para permitir que se caminhe com ela aberta. O brasileiro canta e, enquanto canta, esquece. Ou finge esquecer. Ou aprende a conviver. No fim, dá no mesmo. Porque “deixa a vida me levar” não é desistência, é pausa.
O samba tem esse poder quase químico de alterar o estado de espírito. O sujeito chega pesado e sai leve. Chega quebrado e sai inteiro por dentro. Nada mudou do lado de fora. A conta segue vencida, o amor não voltou, o amanhã continua incerto. Mas algo mudou por dentro. Como se alguém lembrasse, em tom baixo, que “tristeza não tem fim, felicidade sim”. E, naquele instante curto, isso basta.
Ele ensina uma filosofia perigosa e necessária. A de que nem toda dor precisa ser resolvida agora. Algumas só pedem adiamento. O samba empurra o sofrimento para depois, para amanhã, para um tempo indefinido. Enquanto isso, o corpo balança, a boca canta, o coração descansa um pouco. O mundo é mesmo um moinho, mas enquanto ele gira, a gente dança pra não cair.
É por isso que o samba fala tanto de dor sem nunca afundar nela. Ele canta a perda, a saudade, o abandono, mas sempre com melodia, sempre com beleza. Como quem diz: dói, sim, mas olha como dói bonito. Olha como ainda dá pra sorrir no meio do estrago. “As rosas não falam”, mas o samba fala por elas.
O povo brasileiro se agarrou ao samba como quem se agarra a um remédio sem receita. Um calmante coletivo. Uma morfina cultural. Ele não pede estudo, não exige preparo, não cobra nada além de presença. Basta chegar, ouvir, cantar junto. “Quem é de samba sabe”, e quem não é aprende na primeira palma batida fora do tempo.
O problema do Brasil é o samba porque ele impede a ruptura total. Porque amortece o impacto. Porque transforma revolta em refrão, angústia em verso, cansaço em balanço. Enquanto houver samba, o brasileiro segue funcionando, mesmo ferido, mesmo exausto. Talvez não seja a cura. Mas é o alívio. E, neste país, alívio já é sobrevivência.
Márcio Vidoti
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