O esgotamento de uma sociedade que já não sabe rir
Reduzir tudo a um filtro de ofensa pode nos fazer perder contato com nossa identidade

Nas últimas semanas, um novo debate viralizou nas redes sociais: a representação tradicional das festas juninas — com chapéu de palha, dente pintado e roupas remendadas — estaria perpetuando estereótipos ofensivos à cultura caipira?
Para alguns, trata-se de uma crítica justa: a simplificação da figura do homem do campo em trajes caricatos poderia contribuir para um olhar depreciativo sobre o Brasil profundo. Para outros, é mais um sinal da sensibilidade extrema de uma sociedade que parece ter desaprendido a rir, brincar e celebrar com leveza.
Mas o que essa discussão revela, na verdade, é muito mais do que um conflito sobre trajes típicos. Ela escancara um sintoma contemporâneo: a crescente fragilidade emocional da nossa sociedade — o medo de errar, de ser mal interpretado, de ofender, de ser cancelado.
Vivemos tempos de hiper interpretação. Onde antes víamos folclore, agora vemos ofensa. Onde havia festa, vemos problemas. A tentativa legítima de combater preconceitos se transforma, frequentemente, em uma vigilância emocional exaustiva que, paradoxalmente, adoece a própria saúde mental coletiva.
Cuidar da saúde mental é também promover escuta, empatia e consciência crítica. Mas isso não pode nos levar à supressão completa da espontaneidade, da cultura popular e do afeto expressivo. A fronteira entre respeito e paralisia social é tênue — e estamos perigosamente próximos de cruzá-la.
Ao invés de simplesmente proibir símbolos ou tradições, deveríamos promover o debate respeitoso, o diálogo com quem vive a cultura caipira no dia a dia, e, sobretudo, resgatar um olhar mais saudável e menos punitivo sobre o outro e sobre nós mesmos.
Como médica especializada em Saúde Mental, vejo diariamente os efeitos da hipersensibilidade social: ansiedade generalizada, medo de se posicionar, perda de vínculos espontâneos e um sentimento crônico de inadequação. Estamos trocando o convívio genuíno por interações filtradas e tensas.
Festas juninas — como o Carnaval ou o Bumba Meu Boi — sempre foram expressão de pertencimento. Reduzir tudo a um filtro de ofensa pode nos fazer perder contato com nossa própria identidade cultural e afetiva.
É possível criticar o excesso sem renunciar à consciência. É possível rir sem ridicularizar. E é possível preservar tradições sem perpetuar estigmas. Mas, para isso, precisamos parar de tratar a saúde mental como fragilidade e começar a tratá-la como maturidade emocional.
Que as festas juninas sigam sendo espaço de alegria e reflexão. E que a saúde mental coletiva reencontre o caminho do equilíbrio — onde o respeito convive com a leveza, e a empatia não precise anular o sorriso.
Silmara Bega Caffagni
Médica – Saúde Mental e Cuidados