O Dia da Consciência Negra e a 'segunda abolição'
Pessoas negras seguem majoritariamente nos trabalhos mais pesados, um eco direto da lógica escravista

“Aqueles que não conseguem lembrar passado estão condenados a repeti-lo” George Santayana.
O Dia da Consciência Negra no Brasil ultrapassa a ideia de que brasileiros devem sentir culpa pelos atos de seus antepassados. O objetivo não é moralizar indivíduos, mas reconhecer que o país foi erguido sobre o maior sistema escravista do mundo e um dos mais violentos genocídios já registrados.
Entre os 12,5 milhões de africanos traficados pelo Atlântico, cerca de 5 milhões desembarcaram no Brasil. Aqui, foram submetidos ao trabalho forçado nas lavouras de açúcar e café, nos engenhos, na mineração e em serviços urbanos e rurais que sustentaram a economia colonial.
Aproximadamente 2 milhões morreram nas mais de 35 mil travessias transatlânticas operadas por uma lucrativa rede luso-brasileira de traficantes de pessoas. O sistema durou quatro séculos e só foi abolido há pouco mais de 130 anos, fazendo do Brasil o último país do mundo a extinguir a escravidão. A distância histórica é curta, Pelé nasceu apenas cinquenta anos após o fim legal do cativeiro.
Ter consciência desse legado não é ideologia; é compreender o país e reconhecer que a economia brasileira — do açúcar ao ouro, do café ao tabaco — foi construída à custa da exploração de africanos escravizados. A escravidão financiou o luxo das elites, mas deixou como herança infraestrutura precária e desigualdade profunda.
Nesse contexto, o escritor Laurentino Gomes, autor da trilogia Escravidão, defende a necessidade de uma “segunda abolição” para garantir igualdade real de oportunidades. A ideia ecoa Joaquim Nabuco, que já alertava que o Brasil continuaria marcado pelo cativeiro.
As evidências desse passado estão em toda parte. Nas cidades, pessoas negras seguem majoritariamente nos trabalhos mais pesados, precários e sub-remunerados, um eco direto da lógica escravista. Enquanto o “afrobrasil” é vendido como produto turístico na música, na culinária, nos esportes e na dança, o cotidiano revela desigualdades brutais: negros são 80% dos 10% mais pobres e apenas 1% dos 10% mais ricos; têm renda média quase duas vezes menor; lideram índices de analfabetismo, desemprego e encarceramento; são minoria na pós-graduação, na docência universitária, na medicina e na política.
A naturalização dessa violência tinha respaldo estatal. No século XIX, o governo imperial mantinha uma tabela oficial que estipulava quanto os senhores deveriam pagar ao Estado por cada chibatada aplicada em pessoas escravizadas. O açoitamento, longe de ser apenas uma prática privada, era administrado, tarifado e executado pelo próprio Estado brasileiro, um serviço público a favor dos proprietários.
Hoje, de acordo com o IBGE, mais de 50% da população se autodeclara preta ou parda. O Brasil é o segundo maior país negro do mundo, atrás apenas da Nigéria. Mas, enquanto não enfrentar o legado estrutural da escravidão, seguirá incapaz de realizar seu próprio potencial e permanecerá preso à mediocridade.
Alan Roger dos Santos Silva
Cirurgião-dentista formado pela UNESP, mestre e doutor pela Faculdade de Odontologia da Unicamp (FOP-UNICAMP). Fellow da American Academy of Oral Medicine e professor visitante no Departamento de Medicina Oral da Universidade da Pensilvânia, na Filadélfia (EUA).